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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Sonhar para Despertar

  • Foto do escritor: Marcelo Henrique
    Marcelo Henrique
  • 6 de nov.
  • 3 min de leitura

O curta-metragem Desperta, sob a direção de Micaella Matias, transcende a mera narrativa de ficção científica e drama ao se configurar como uma confluência estética de múltiplas linguagens artísticas, nas quais a música, a dança e o cinema convergem para articular uma experiência sinestésica e afetiva. A obra se estrutura a partir de uma premissa distópica e instigante: um sujeito, em estado de luto após uma perda significativa, busca refúgio em um programa experimental que lhe promete a vivência plena em um universo onírico autogerado.

A fotografia do filme adota uma economia de meios que, embora possa ser interpretada como despretensiosa, revela-se profundamente eficaz em sua função diegética. A opção pela câmera na mão (handheld) confere à obra uma estética de imediaticidade e urgência, subvertendo a formalidade técnica e estabelecendo uma sensação de proximidade fenomenológica com o universo narrativo. Este procedimento estilístico não se restringe a um mero recurso formal, mas opera como uma ferramenta narrativa que insere o espectador diretamente na subjetividade do protagonista. Essa imediaticidade visual encontra ressonância na performance dos atores. Ao interagirem com a câmera em sua instabilidade controlada, os intérpretes transmitem uma autenticidade que confere densidade à experiência fílmica. A ausência de um aparato técnico ostensivo não se configura como uma limitação; ao contrário, potencializa a emergência da emoção bruta e da vulnerabilidade dos personagens, transmutando a simplicidade da imagem em um veículo para a complexidade da condição humana.

A montagem, por sua vez, estabelece um diálogo intrínseco com o tema central da obra. A fluidez entre o estado de sonho e o estado de vigília é alcançada não por meio de transições explícitas, mas por um trabalho rítmico que deliberadamente embaralha as fronteiras da percepção. O tempo narrativo, no curta, é percebido como dilatado — e esse alongamento temporal convida o público a compartilhar o mesmo estado de suspensão existencial do personagem. Desta forma, a experiência narrativa se configura como um rito de passagem: o espectador não apenas observa um "despertar", mas participa ativamente de sua gênese.

A narrativa atinge seu clímax dramático no momento em que o refúgio onírico, inicialmente percebido como um ambiente de segurança e perfeição, revela-se uma armadilha psicológica, culminando em um pesadelo de auto confrontação. Este é o ponto de virada crucial, onde a falibilidade da tecnologia em sustentar a ilusão força o protagonista — o músico — a um embate consigo mesmo, mediado pela emergência de memórias pretéritas. Nesta sequência, o diálogo se estabelece como o elemento estrutural mais robusto do roteiro. Não se trata de uma interação externa, mas de um profundo e doloroso diálogo interno — uma manifestação verbalizada da cisão psicológica do personagem. A capacidade do roteiro de expressar a complexidade humana e o peso intransferível da perda se revela precisamente nesse momento de auto interrogatório, o espectador é convidado a testemunhar a luta pela aceitação da realidade, mesmo que dolorosa. O filme apresenta, então, um questionamento essencial: a cura reside na fuga tecnológica ou na coragem de enfrentar a própria memória?

Desperta se consolida, portanto, como uma obra que reflete sobre os limites ontológicos entre o real e o imaginado, entre o consolo da ilusão e a imperatividade de encarar o próprio abismo existencial. A direção de Micaella Matias demonstra maturidade conceitual ao postular que o verdadeiro conflito do personagem não reside na tecnologia que o aprisiona, mas na recusa em processar a dor que o habita. O filme transforma o ato de sonhar — e, por extensão, o ato de filmar — em um gesto de resistência à anestesia emocional que caracteriza a contemporaneidade. Com sensibilidade e rigor poético, Micaella Matias constrói um curta que, mesmo em sua brevidade, propõe uma experiência cinematográfica completa: visual, sonora e existencial. Despertar é um convite para que o espectador também inicie seu processo de despertar — não apenas da diegese, mas da própria fuga da realidade.


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