O Belo Alaranjado do Fim do Mundo
- Kevin Campião

- 6 de nov.
- 4 min de leitura
Laranja. Essa é a primeira coisa que vemos em “As Quatro Estações”. Um fundo de cor sólida completamente laranja. Ao longo de toda a projeção, tal cor aparece de forma recorrente. Não apenas como uma camada que incide nas fusões entre blocos, mas sobretudo nas chamas que consomem as matas. De acordo com a psicologia das cores, o laranja costuma estar associado à criatividade, ao equilíbrio, à alegria, à confiança, ao calor, dentre outras significações. Porém, nesse contexto, evidentemente, a única leitura plausível seria a associação ao calor. Intenso. Destruidor. Aterrorizante. O laranja ainda é frequentemente usado, em diversas situações, como sinalização de alerta, seja no trânsito, em obras ou nos próprios alertas meteorológicos. Aqui, ele complementa a mensagem transmitida, uma vez que o curta, em toda a sua unidade, consiste em um forte alerta sobre o desastre climático para o qual caminhamos.
Antes de adentrar em sua problemática, a obra nos recorda do olhar inocente que dirigimos ao mundo durante a infância. Tudo é novo e o novo é convidativo, interessante e belo. Isso é trazido com muita delicadeza por parte da narração e reforçado pelas cores bastante vivas das imagens de animais em zoológicos e de árvores e plantações pelas estradas. O instrumental de “João e Maria”, de Chico Buarque, acrescenta em significado a essa reflexão sobre a inocência, considerando que a letra propõe uma aventura através da imaginação infantil.
Com o passar dos anos, entretanto, nossa perspectiva se transforma e a criança sonhadora pode acabar se tornando, tal qual o narrador, um adulto desiludido. Esse sentimento de desencanto surge em meio a uma gradual tomada de consciência, diante de uma vida que, de repente, sem avisos ou respostas, se complexifica. O filme suscita essa compreensão através de uma abordagem histórica, quase didática, dos processos que conduziram nosso país à situação em que ele se encontra, debruçando-se principalmente sobre a “ocupação” da Amazônia na década de 1960. O uso preciso das imagens de arquivo nos leva de volta a esse período, promovendo uma vívida viagem pelo passado, bastante informativa, mas não por isso menos simbólica. A narração, similarmente, por mais que abrace um certo teor educativo, não abre mão, em nenhum momento, da poesia. As ideias trabalhadas por ela sobre o desejo de avanço da humanidade, “ordem e progresso”, são complementadas pelo sagaz emprego do instrumental de “Construção”, também de Chico Buarque, que enriquece essa reflexão sobre uma organização sistêmica destrutiva e desumanizante.
Para percebermos como todas essas questões ressoam em nosso presente, como todos esses processos influem no agora, basta olharmos para aquilo que nos rodeia. Aqui, somos convidados a dirigir nossa atenção às estradas. Vários planos filmados em rodovias se sucedem e o que se nota é a presença massiva de plantações. Uniformes e vastas, elas preenchem quase toda a metade inferior da tela, estendendo-se até a linha do horizonte. Em meio a elas, diminutas, algumas poucas áreas de preservação, ocupando um espaço geometricamente delimitado. Reservas que só estão ali pelo mero cumprimento da legislação, mas que não contribuem de fato para a manutenção de um ecossistema.
Tal conjuntura, como era de se esperar, reverbera em — assim como é influenciada por — discussões políticas, adentradas pelo curta por meio de entrevistas, discursos e imagens de dentro do Planalto. A montagem apresenta um recorte sóbrio das figuras que comandam a política brasileira, não apontando nenhum lado específico como sendo irretocável, mas, pelo contrário, indicando que ambos falharam em resolver o problema. O resultado dessa ineficácia se vê na sequência de manchetes sobre a crise climática. Enquanto as lemos, ouvimos a melancólica “Gymnopédies: No. 3 - Lent et grave”, de Erik Satie. Uma música orquestrada, sem letra. As palavras que estampam as matérias já demonstram de forma eficiente o quão grave é a situação em que o mundo se encontra.
Diante de um presente tão colapsado, se desdobra no horizonte a dura previsão de um futuro trágico. Os sonhos dão lugar aos anseios. Confiamos a liderança às pessoas erradas e hoje estamos todos pagando o preço. Nos priorizamos individualmente e agora estamos todos sofrendo as consequências, juntos, tendo de lidar com secas brutais e enchentes devastadoras. Devemos, como o homem da “Valsinha” — mais uma de Chico Buarque, cujo instrumental acompanha sórdidas imagens de desastres climáticos —, mudar nosso olhar para o cotidiano, para o mundo, para os outros, para tudo. Ou, talvez, deveríamos ter feito isso antes. Não há como reverter aquilo que já se passou. O que se queimou agora são cinzas e nunca mais voltará a ser árvore.
Por mais que a narração esboce uma certa esperança nos últimos versos, o tom pessimista, ao meu ver, já instaurado com a quebra da inocência, se eleva na sequência final. O uso de “What a Wonderful World”, tal qual em Bom Dia, Vietnã (“Good Morning, Vietnam”; 1987), de Barry Levinson, realça a ambiguidade entre o horror do que se vê e a expectativa de que algum dia tudo possa ser diferente. Aqui, porém, a versão que ouvimos é a de Soap&Skin. Mais lenta, mais sombria, parece ter sido contaminada pela desesperança das imagens, tornando a construção atmosférica da obra ainda mais pesada. O laranja, que demarcou as transições e apareceu pontualmente ao longo do curta, toma conta da tela. Brasas intensas que modulam sem direção certa. Florestas enormes sendo consumidas por chamas ainda maiores. Queimadas que se estendem até onde os olhos podem alcançar. O cinza também se faz muito presente, notável nos objetos completamente destruídos pelo fogo e nas colossais nuvens de fumaça que dominam os céus. Imageticamente, apenas no âmbito estético, é possível enxergar uma beleza na maneira como todos esses elementos, de cores incandescentes e formas volumosas, se dispõem nos planos. Uma beleza catastrófica e apocalíptica, difícil de ser plenamente apreciada considerando a gravidade do contexto em que esses registros foram capturados.
No final das contas, o que me marcou em minha experiência com “As Quatro Estações” foi justamente essa contemplação desconfortável do que bate na tela, a qual sinto ter sido propositalmente provocada pelo filme. Ele escolhe e organiza suas imagens com muita eficácia, amarra-as através de uma montagem bem ritmada e uma narração assertiva em suas proposições e em seu tom, e enriquece o todo incorporando músicas que adicionam sutis, mas valorosas, camadas de subtexto. Formalmente, uma unidade muito virtuosa, mas que, não por isso, nos cega da fealdade do problema. Muito pelo contrário, somos constantemente cutucados, provocados e levados a nos perguntar: ainda é possível alterar o curso das coisas? Se sim, por que ainda não começamos?



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