Quando a Noite é Vermelha: retratos de um nascimento de um arquétipo
- Gael Queiroz

- 5 de nov.
- 3 min de leitura
"O corpo tem suas razões, o corpo tem linguagem, quando você fala a linguagem do corpo, sua vida muda."
É com a poderosa citação da professora e educadora Drag Queen Rita Von Hunty que iniciamos a reflexão sobre "Quando a Noite é Vermelha", um curta-metragem que se propõe a registrar a imersão de um jovem cineasta na efervescente noite drag paulistana, transformando-se, por uma noite, em sua persona drag: Eva Trovão. Este documentário, ao acompanhar essa jornada de metamorfose e descoberta, torna-se uma janela íntima para a linguagem singular do corpo drag. A relação entre o corpo "original" e o corpo-personagem (a Eva Trovão interior que é finalmente abraçada) é o motor emocional e temático do filme.
O curta carrega uma estética honesta e crua do cinema digital, operando quase como um diário de bordo visual e sonoro. Armado com uma única câmera e um microfone, o documentário se lança no pulsar da noite, capturando a energia, os bastidores e os reflexos do trabalho árduo e transformador da drag. As entrevistas com grandes nomes do cenário drag de São Paulo, como Alexia Twister, enriquecem o filme com múltiplas perspectivas sobre a arte. A fala de Twister, por exemplo, sobre a drag como um arquétipo feminino de seu imaginário, uma conexão com a palhaça, com a criança interior, ressoa profundamente. Para quem, como o espectador-crítico, também performa a arte drag, essa identificação é imediata e potente, sublinhando a drag como um ato de autoconhecimento, libertação e (re)invenção.
O filme, portanto, cumpre seu papel ao expor o ser e o experimentar da drag, ao mesmo tempo que lança luz sobre a realidade desse trabalho artístico no Brasil, frequentemente invisibilizado ou desvalorizado. A direção de Caio Marques e Nilton Silva se mostra assertiva ao construir um painel representativo e sensível, equilibrando a leveza da arte com a seriedade do ofício.
No entanto, é na montagem que "Quando a Noite é Vermelha" demonstra um potencial inexplorado. A direção do documentário é sólida, mas a edição assume um aspecto mais didático, de simples registro. Embora este estilo tenha sua validade, a oportunidade de aprofundar a experiência da performance de Eva Trovão no palco parece ter sido subaproveitada.
Existe um breve, mas eletrizante, momento em que o cineasta sobe ao palco com a câmera ligada, oferecendo um vislumbre em primeira pessoa, uma perspectiva imersiva e visceral que nos coloca na pele da artista. Infelizmente, essa abordagem é abruptamente contida, e a montagem do clímax da performance de Eva Trovão no palco adota uma distância mais contemplativa. A sensação é de que a experiência mais rica e pessoal da metamorfose — a concretização da Eva Trovão — foi sacrificada em prol de um distanciamento documental.
Neste momento crucial, a performance em si, merecia ser alongado e tratado com uma edição que brincasse mais intensamente com a sonoridade e o ritmo visual. Uma montagem mais arrojada, talvez com jump cuts, sobreposições sonoras ou um uso mais expressivo da trilha, poderia ter traduzido cinematograficamente o êxtase e o poder catártico de se manifestar plenamente no palco como Eva Trovão. Esse "mal aproveitamento" da montagem deixa um gosto de quero mais no que diz respeito à celebração visual e sonora da persona recém-nascida. "Quando a Noite é Vermelha" é um curta-metragem de boa direção, relevante e profundamente tocante em sua temática e nas vozes que apresenta. É um documento importante sobre a arte drag em São Paulo, e um registro íntimo da jornada de autodescoberta de um artista. No entanto, o filme peca por não ousar mais em sua forma, especialmente no clímax da performance, onde o abraço da Eva Trovão merecia ter sido mais longamente e intensamente dançado pela montagem. Fica a sugestão e o desejo para que Caio Marques e Nilton Silva continuem explorando a linguagem do corpo drag e a estética imersiva, potencializando a técnica para casar com a potência da arte que eles tão bem registram.



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