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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Para quem tem medo de sexo

  • Foto do escritor: Heloisa Montai
    Heloisa Montai
  • 6 de nov.
  • 5 min de leitura

Sob o risco de soar emocionada ou direta demais, direi que No Fim da Noite é um dos melhores filmes que já passaram pelo Festival Desver. Falo isso porque talvez esteja um pouco nostálgica em relação a minha trajetória na faculdade, visto que estou para terminá-la, e pensar em um dos últimos filmes que vi — e ainda, escrevi sobre — no Festival como um dos melhores, parece tornar a história mais fechada e especial. Odiaria, na minha última participação no Festival como graduanda, detestar os filmes com os quais caí para escrever.

Participo do Desver desde o meu primeiro ano de curso, já passei pela curadoria, júri e estive três vezes na cobertura, a ala que se designa a escrever as críticas sobre os filmes. Faço essa breve recapitulação para dizer que, em todos esses anos, eu não lembro de outro filme que tenha pautado o sexo ou o fetiche de forma tão direta. Como são alguns anos e muitos filmes, tive que refrescar a memória, eis um pequeno panorama: muitas animações destinadas a um público adulto, em decorrência de traços de humor satírico, do existencialismo ou do terror que as envolve, como é o caso de Paloma, dirigido por Alex Reis, Carcinização, de Denis Souza, e Noite de Cão, de Pedro Bugarin; muitos documentários sobre eixos regionais ou identitários, como Procura-se Bixas Pretas, de Vinicius Eliziario, Anhangabaú, de Filipe Travanca, e Exotismos, de Alessandra Gama; documentários e ficções sobre a cena do cinema, seja ela regional, nacional ou internacional, como Viver de Cinema, de Mia Marzy e Emanuelle Cipriano, Mondo Cacho, de Matheus Leone, Cinéfilo Com Causa, de Catarina Forbes; Muito cinema de gênero, em obras como El Canto Del Urutau, de Moisés Luna e Vovó, de Franco Dafon. 

Em muitas dessas, há narrativas acerca da sexualidade, mas mais como identidade e mediadora de afetos, não exatamente quanto a experiência sexual. O que é estranho de se pensar, por muitos desses realizadores serem jovens que estão descobrindo a vida e, por consequência, a própria sexualidade. Mas poucos parecem ter interesse em retratar essa parte.

Sublinho essa falta, porque há um tempo, apontam o adjetivo de casto à geração Z e às mídias que se tornaram fenômenos para essa faixa etária, a qual eu me enquadro. Isso quando não são chamadas de moralistas, por tratar o sexo como algo repugnante. Em ambos os casos, parece apontar para uma questão mal elaborada com a libido.

Dentro desse cenário, No Fim da Noite é uma enorme e boa surpresa. O filme, que conta a história de um casal acostumado a uma dinâmica sexual que vai de voyeurismo a exibicionismo, de forma não irônica, é bem resolvido quanto a sua libido. O seu mérito não está em tratar do sexo, unicamente, mas em nenhum momento moralizar a si mesmo ou aos seus personagens. Assim, o grande interesse da trama está em não só descobrir até onde o casal retratado vai para sentir prazer, mas em acompanhá-los. 

Dentro dessa proposta, a libido do filme reside muitas vezes em testar os limites do espectador entre o repugnante e o atraente, quando Gabrielle e Leonardo partem para a inserção de um terceiro membro nos seus jogos: um homem mais velho, médico que associa o ofício ao fetiche. A partir daqui, nutrem a relação em uma espécie de centro cirúrgico; as brincadeiras passam a ser sobre cortes e machucados, com toques de hipocondrismo que perpassa pelo roleplay de tratamento de doenças que não existem. Sublinha-se que o filme não torna o sexo repugnante, mas utiliza de elementos outrora associados a um imaginário de terror ou atrelados a uma repulsa, como os cortes, machucados, o sangue e o vômito, e os associa a uma atmosfera de masoquismo e tensão sexual. A obra abre, então, espaços para brincar com o body horror, mas sem perder de vista o caráter atraente que esse pode ter, como em vertentes de filmes que David Cronenberg já fez. 

Nesse sentido também, o sexo é um ponto de partida para o fetiche das personagens, não o objetivo final da trama. É por meio da tensão e expectativa fetichista que é criada a atmosfera desejante e densa da narrativa, que ansia pelo perigo e a adrenalina. Através dessa, a libido percorre cada plano, dos mais fechados, que convidam o espectador a participar, se tornar íntimo dos personagens; aos mais abertos, que o resignam ao lugar de voyeur, outrora ocupado pelo próprio casal, que gosta de observar seus vizinhos. Esse switching, presente aqui na mudança da perspectiva que a câmera assume, também se emenda na narrativa dos jogos sexuais, que brinca, através dos diálogos de roleplay, com a previsão do encontro do casal com o outro homem. Encontro esse, que é a fantasia mais profunda do casal emergindo à superfície. 

O grande responsável por tornar o excêntrico mais atraente, encontrando um espaço de representação mais fidedigno para a fantasia, é a grande estetização do filme, proposta através de uma iluminação dura, com bastante contraste e recheada de neons, e a aproximação com as caracterizações de filme de gênero. Os elementos dos raios-x na parede do consultório do médico, a projeção de um ultrassom sobre o corpo dos personagens, os planos dos bisturis, as luzes azuis agregam ao flerte com a ficção científica e o terror, semelhante a filmes como Titane, de Julia Ducournau e eXistenZ, do Cronenberg. Ainda há espaços no filme que refletem imprecisões, como o foco que parece desorientado por um momento no plano conjunto de Leonardo e Gabrielle em frente ao espelho, anterior ao encontro do médico, o que se ressalta frente à tamanha precisão técnica do restante da obra. Mas mesmo esse se atenua e encontra formas poéticas de se justificar, frente a uma relação que carecia de mais atenção naquele momento.

Retomando a questão acerca da moralidade da geração Z frente à expressão sexual, em 2021, um artigo de opinião estourou na gringa, através do site Blood Knife, que não demorou para ser traduzido: “Todos são Lindos e Ninguém está com Tesão”. Nesse, o autor indaga como os personagens nos últimos anos se tornaram pouco desejantes, ou meros instrumentos das narrativas para ilustrar a sua ideologia. Sinto que o cinema universitário acompanha um pouco essa tendência ao que muitas vezes cria personagens moralmente corretos, circunscritos sob narrativas que se justificam só a cabo de demandas sociais, mas que fogem da libido e do desejo a todo custo. O que resulta na criação de histórias com pouco estímulo imagético, ou apenas o suficiente para a ilustração daquela fábula, e pouco apaixonadas quanto à sua forma de narrar cinematograficamente.

Sinto que No Fim da Noite vai na contramão dessa tendência. Ao abraçar a densidade da expressão sexual dos seus personagens, o que por vezes reflete em atitudes tidas como moralmente questionáveis, pode explorar as suas potências estéticas e os flertes que estabelece com o cinema de gênero. Foca-se em um único e bem executado objetivo: contar, de uma forma bem contada, uma boa história.


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