Flutuar no mar e o não pertencimento do lugar de onde viemos. São duas sensações diferentes, mas que Oriri nos mostra serem a mesma coisa. Dirigido por Aytiti Diop, o curta-metragem baiano contribui para um emergente expoente de cinema brasileiro nordestino contemporâneo, especialmente no campo universitário, que busca extrair vertentes experimentais, tais quais a adoção de figurinos distópicos, vozes distorcidas, narrativas que flertam com o futuro da raça humana e a introdução de seres sobre-humanos tentando descobrir qual o lugar do Homem na Terra. É a partir dessas novas cadeias de imaginário visual tão brasileiras – um país miscigenado que mistura gêneros e culturas – que subgêneros tão únicos como o tupinipunk e o cyberagreste estão surgindo cada vez mais. Aqui em Oriri temos uma exploração da linguagem a partir da comunidade quilombola da Bahia. Suas potências e forças vêm da experiência dos realizadores com a cultura afro diaspórica. Há algumas edições tivemos no Festival um outro filme que também abarcava algumas dessas questões, Abjetas 288 também é do fluxo universitário nordestino, tanto quanto experimental, considerando seus vícios de linguagem dos subgêneros futuristas – ali, as personagens também exploram a cidade e suas territorialidades à busca de entender onde estão. Oriri aparece na presente edição do Desver para enfrentar a hegemonia de um cinema narrativo convencional. A força da representação quilombola no cinema é, por si só, um ato de resistência e de se desvencilhar de qualquer pressuposto cinematográfico. Essa força aliada às propostas de linguagem afro futuristas representadas faz que a forma importe mais que o conteúdo - a decupagem dá esse suporte quando a narrativa pausa para apreciarmos o encontro de Hak com Oriri -, ainda que seu conteúdo seja a exploração da forma.
Oriri é um filme sobre amigos num futuro cem anos à frente que estão bebendo cerveja em uma roda de conversa, até que surge o infinito, uma bebida quilombola com efeito alucinógeno. As vozes distorcidas dos personagens dificultam a compreensão plena apenas pelo ouvido. A maneira única que eles se comunicam transforma o ambiente e as pessoas nele inseridas muito mais factível à proposta da obra. O mundo inteligível criado pelos realizadores transporta quem assiste a esse lugar de imaginário não apenas visual, mas sonoro também. Confesso que assistir ao filme sem as legendas me deixou mais inerte na gramática realizada. Compreender o que os personagens falam parece ser trapacear a linguagem do curta. Os seus discursos estão no ato de se comunicar, mais do que absorver e depreender. Sinto que a tentativa de nos colocarmos como figuras passíveis de pertencimento ao grupo de seres superiores representada conflita na experiência sensorial de Oriri. Entender o que se fala é um equívoco. Não reconhecer a linguagem dos personagens é poderoso à mesma medida que a linguagem do filme cria um momento para si através da montagem, lembrando, a quem assiste, o poder de brincar com os conceitos de cinema e suas potências. Por mais que a metalinguagem não se faça presente, assistir ao filme e não se sentir ameaçado pela decupagem e pelos planos virtuosos que o realizador nos transmite - especialmente com o uso de uma luz caminhante que toca a superfície do rosto e do mar - é como se sentar na plateia de um espetáculo e presenciar a apresentação de olhos fechados. As limitações de acompanhar os recursos do filme em sua totalidade – se colocar na posição de voyeur que apenas observa a roda de amigos e não tenta se inserir em um ambiente ao qual não pertence – se encontram na incapacidade de experienciar as potências visuais mostradas e todo o uso dos códigos manifestados na obra.
O arco narrativo que leva e eleva Hak, o protagonista, ao encontro com a entidade protetora e guardiã da natureza, Oriri, brinca, também, com a forma do filme de se fazer presente como uma obra que evoca a força daquilo que reinventa a linguagem. O figurino e a maquiagem muito bem pensados e adequados para uma espécie de Terra futurista e sob o jugo da distopia, remonta a uma reviravolta no próprio entendimento de arte que se pode inferir da obra. Aquilo que se transforma a fim de criar uma ideia ou um conceito. No caso de Oriri, um sentimento. A expressão embasada aqui é de buscar o que não nos pertence mais. Ou então retomar o que nos foi tirado. Clamar pela harmonia do espaço ao qual vivemos e do qual viemos é uma força imperativa que se faz presente não apenas no discurso, mas na linguagem do curta-metragem, seja na encenação incitando o personagem a vagar pela cidade, descobrindo seus caminhos enquanto está alucinado, seja articulando a montagem para apresentar uma espécie de transe de Hak enquanto acometido pelo infinito.
A força de Oriri reside na sua experimentação. Seus recursos de linguagem se reinventam e desenvolvem os símbolos propostos pela narrativa, sejam os produzidos em locação como os figurinos, sejam os feitos na pós-produção, como a montagem. Oriri é sobre retornar para quem nos criou. A gramática do filme estrutura um cinema regional disruptivo que caminha entre a jornada de um protagonista e os signos de um gênero experimental – que chama mais atenção que seu conteúdo. É um autoconhecimento do personagem e do filme que vai além da nossa compreensão como espectadores. Aqui, a jornada de Hak está no seu encontro e na sua própria experiência com o que está além do conhecimento humano, coexistindo entre a fórmula fílmica de representar Oriri e a crença do realizador, transportando a sua pessoalidade para dentro da obra.
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