Em O Buraco, filme dirigido por Ricardo Graça e Victor Lima, acompanhamos uma estranha mulher presa em um buraco no meio do deserto. Apesar de estar sozinha, a protagonista consegue sair dessa espécie de poço e vaga infinitamente por areias avermelhadas em busca de ajuda, quando, um grupo de corvos a ataca e ela deve tentar fugir para sobreviver. O Buraco usufrui de uma técnica 3D de animação, tomando como referência diversos exemplos comerciais mais recentes, como é o caso de Love Death & Robots, S3EP3 O Mesmo Pulso da Máquina (2022), Nimona (2023), lançamento recente da Netflix, e até mesmo empresta de uma estética de jogos indie, como é o caso de Sable (2022) e Astroneer (2016). O que todas elas têm em comum, é a falta de detalhes, contornos, luz, sombra… Na verdade, tudo. É um estilo “plano”, chapado, vazio e que transborda um ar de inacabado. Consigo traçar uma linha onde esse tipo de “traço” possa se tornar belo ao ser visto pela primeira vez, porém, o comodismo e facilidade de criar algo sem detalhes algum é tentador para esses exemplos.
O filme possui uma narrativa um tanto quanto batida. Já vimos diversas vezes um protagonista preso num local estranho que deve fazer de tudo para se salvar. Aqui, temos o que parece ser apenas um episódio de uma série antológica tirado de contexto. Sem explicação, sem tensão dramática, sem linha narrativa, sem… nada. Acho que funcionaria melhor num contexto seriado, pois poderíamos apenas engolir esse episódio e pular logo para o próximo na esperança de ser algo melhor. Em toda a sua duração eu não poderia me importar menos com o destino da personagem, com seu sofrimento ou até mesmo entender o porquê dela querer fugir dali. Temos um arco narrativo pouco claro que tenta nos prender a todo mundo criando dispositivos intermináveis, como é o caso dos plot twists. Primeiro, descobrimos que a protagonista não está realmente presa, mas está sozinha. Logo em seguida, aparecem corvos rondando o local e a levam para um corpo morto de uma mulher igualzinha a ela. Menos de dois minutos depois, a mulher então é morta pelos corvos e seu olho é arrancado... Só que na verdade existe uma versão dela mesma do futuro que sobreviveu aos ataques e come a cabeça do corvo. Essa vontade insaciável de prender a nossa atenção com reviravoltas tão simplórias em meio à uma narrativa lenta e desinteressante, demonstra a fragilidade de um roteiro extremamente raso.
Não há real conexão entre filme e espectador - creio que o objetivo do curta não era causar apatia em seu público - apenas sentamos e presenciamos uma espécie escape room em mundo aberto. Afinal, quem é aquela mulher? O que ela estava fazendo ali? Como existem três dela? Corvos comedores de olhos? Isso é algum tipo de metáfora? Eu não sei. Então, a todo momento, você - como audiência - tenta embarcar em um exercício de se importar com algo nenhum pouco importante. Claro, um filme não precisa de história alguma para ser um bom filme, porém, quando não há nada além para apresentar ao público, uma boa e velha história viria a calhar. Na verdade, talvez eu só não tenha entendido o curta. Não sei se ele quer ser demais para um filme que é “de menos”, ou se ele é um filme demais para alguém “de menos”. Para ser sincero, eu simplesmente não sei.
Uma coisa que me incomoda bastante na obra é a sua decupagem e montagem. Metade dos planos são planos gerais repetidos para nos mostrar a infinidade do deserto que ela está inserida, e a outra metade se dá pela insistência do diretor de querer nos fazer engolir sequências e sequências de planos subjetivos. Parece que o filme quer nos forçar a sentir alguma coisa. Nos forçar algum tipo de empatia, a entrar na pele da protagonista uma vez que essa não fala, não esboça reação e não nos ajuda de forma alguma a entender o que está acontecendo ali. Não conhecemos o propósito dela ou mesmo da própria narrativa - claro, presumindo que o ponto chave do filme seja a própria história, já que a sua técnica e forma não são. Além do filme ser dividido em quatro blocos pela montagem. Estes são: o buraco, a borda, o abismo e a cimeira. Estes blocos, ou partes, quebram o filme em quatro, atrapalhando o timing da narrativa e criando barreiras - barrigas - no compasso da mesma, uma vez que somos interrompidos a cada dois minutos para ler um letreiro que nem explica e nem ajuda no entendimento da obra.
Não precisa de história quando temos um visual deslumbrante, cheio de técnica, beleza de composição e decupagem. Porém, sinto simplesmente um pouco caso na composição dos quadros e a busca da facilidade naqueles já manjados. O enquadramento do "personagem correndo", é apenas um plano médio que já vimos um milhão de vezes em qualquer filme de ação. A "grande revelação do mundo em que a personagem está inserida", é apenas um plano geral com o objeto centralizado para criar profundidade. É fácil aderir planos médios e gerais repetidos durante dez minutos pouco se importando com sua mise-èn-scene. Os corpos apenas se movimentam para criar uma pose "impactante" para a câmera. A necessidade de centralizar tudo a todo momento cria uma plasticidade e simetria irreal, que, para ser sincero, incomoda um pouco. Sinto um filme engessado que anda somente aquilo que ele precisa andar, não querendo ingressar no seu próprio mundo, agir por conta própria ou se desprender de seus criadores de alguma forma. Não há força vital no filme, é apenas um exercício de rigging 3D interminável. O controle total na decupagem de uma animação, onde tudo pode - e, deve - sair exatamente como pensado na cabeça do diretor, deveria ser um dispositivo para criação de belíssimas composições, mas vejo apenas mais um filme que poderia ser feito por qualquer um. Não há assinatura ou particularidades, é só uma animação chapada e sem detalhes que busca em seus poucos contornos uma espécie de contraste.
No entanto, existem dois planos - duas trufas - maravilhosos no filme. Um deles está alocado durante a sequência final de perseguição, onde a nossa protagonista foge incansavelmente de corvos assassinos e o outro, no último plano, um shot épico e heróico da protagonista enquanto mastiga a cabeça de um pobre corvo. O filme sai de uma mesmice de cores pastéis, como amarelo, laranja e vermelho, para encher os olhos dos espectadores com uma composição feita por uma espécie de auto-contraste entre o preto e o vermelho puro, nos apresentando uma belíssima e criativa imagem dentro de composições pouco inspiradas e monocromáticas.
Retomando os primeiros exemplos do texto, sinto em Nimona, Love Death & Robots, Astroneer e Sable - mesmo se utilizando de uma estilística semelhante que, para mim, é extremamente simplória - uma vontade de apresentar algo único e que adicione dentro de sua própria proposta. Emprestando de outros setores do cinema, como direção de arte, roteiro, som, fotografia, essas obras conseguiram somar em seu todo para chegar ao verdadeiro destaque entre os demais. O Buraco parece ser uma paródia destes, os referenciando a todo momento, porém nunca alcançando patamar algum. É um exercício de animação que não anda, não inova e existe só por existir. Para mim, a coisa mais bela de uma animação é a infinidade de possibilidades de se fazer algo único, algo que busca na sua própria forma a sua força. Relembrando teorias como as de Munsterberg, percebemos a perspectiva formalista do cinema, uma estilística onde a forma do filme importa muito mais do que o conteúdo em si. O filme é um registro organizado de como a mente cria uma realidade significativa. Acredito que filmes de animação, principalmente aqueles experimentais ou universitários - como é o caso deste - devam buscar inovar na sua essência, estilo e forma, não criar qualquer coisa de qualquer jeito apenas para sair um filme.
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