Cuidado ao stalkear a sua ex de madrugada, você pode acabar invocando o diabo: o humor e o terror do mundo digital
- Heloisa Montai

- 6 de nov.
- 5 min de leitura
Acho que todo adolescente que passou muito tempo na internet, principalmente a partir de meados dos anos 2000, já se deparou com correntes online de terror ou trolls —- que é uma forma millennial de se referir ao que depois foi chamado no meio underground da internet como copypastas de terror ou apenas creepypastas. Nessas, o objetivo é assustar ou brincar com as expectativas de alguém através de plot twists em textos, como o título do presente curta traz: Meu nome é Saracael tenho 14 anos (teria se tivesse viva). Ou, através de links, levar a gifs com jumpscares ou vídeos esquisitos e aterrorizantes, que completam o susto ou auxiliam na criação da atmosfera amedrontadora do texto, como também é o caso do curta Meu nome.
Apesar dessa tendência já ser bastante difundida e todo tio ou tia do zap já ter se deparado com um link que leva para um jumpscare com o rosto da menina do exorcista, acompanhado de um grito nos limites de ser estourado (algo que talvez tenha até antecipado o gemidão do zap), acho que esse diálogo é tão próprio da minha geração que eu já sabia o que esperar do filme Meu nome é Saracael tenho 14 anos (teria se estivesse viva) desde a primeira vez que li o título. E por isso, minha relação com o curta se estabelece como um jogo divertido de premeditismo, visto que o filme dialoga com uma série de códigos já muito familiares para mim e, acredito, para todo o inconsciente coletivo da minha geração. O que cria subcamadas de humor na trama e estrutura, quase como uma piada interna geracional.
Por exemplo, é óbvio que o protagonista é um cara que stalkeia a ex que já o superou — fator que cria uma espécie de fábula cibernética ao fim da trama, como: “cuidado ao stalkear a sua ex de madrugada, você pode acabar invocando o diabo” ou “não clique em links que estranhos te mandam na internet” (que é a versão atualizada do não fale com estranhos na rua). Há toda essa caracterização óbvia de uma personalidade que já está na pior e, como se não fosse o suficiente, ainda é perseguida por uma entidade do mal. Além da construção de uma atmosfera de conto de terror burlesco que brinca com as possibilidades dos perigos da internet.
À isso, também é associado a óbvia inserção de cenas do Programa do Silvio Santos, que constituem o vídeo recebido pelo protagonista em seu chat do facebook. A relação de obras audiovisuais com ícones da TV brasileira não é inédita, há muito já se vê a inserção desses em vídeos de humor na internet. Em 2015, um vídeo que se popularizou entre grandes fóruns chamado Shrek is Love, Shrek is Life ganhou uma versão brasileira protagonizada pelo Faustão, intitulada Faustão is Love, Faustão is Life. Também, são incansáveis os memes que associam o Celso Portiolli ao 11 de setembro ou a Xuxa ao satanismo. Essa relação, que vai desde um humor despretensioso e inofensivo com bases no nonsense até sátiras mais irônicas e subversivas com a imagem televisiva e a figura dessas personalidades populares, parece ter um território bem fértil na internet brasileira. Também, parece se associar a uma espécie de relação de apego ou nostalgia em relação a ícones do passado e uma época em que a TV detinha mais estima.
No caso de Meu nome, a princípio, os inserts do Programa do Silvio Santos surgem como um elemento de nonsense, em que a dissonância entre a imagem do apresentador e o seu significado no imaginário brasileiro, associada à comédia e à descontração, criam um contraste humorístico com a atmosfera de terror da trama. Com o passar da narrativa e sobre uma atmosfera mais densa do terror, o programa ganha novos significados e têm a sua imagem subvertida sob a manipulação da imagem digital.
Mas antes de comentar sobre isso, é inevitável não mencionar o timing do filme: faz pouco mais de um ano da morte do apresentador, então, toques de sátira rondam até a escolha do ícone da TV presente no filme, sejam eles intencionais ou não. Dado esse contexto, de antemão toda a imagem do apresentador parece um pouco fantasmagórica para mim.
As imagens do programa usadas no curta são takes de uma criança com o cabelo tigelinha e de duas mulheres com os cabelos grandes e cheios, próprios dos anos 80 ou 90, entrevistados pelo apresentador. Também, cenas das presepadas do Silvio, como ele caindo em uma piscina (daquelas próprias de circo) e soltando a sua famosa risada em direção ao espectador. Às imagens, é aplicado um tratamento que torna suas aparições mais assustadoras a cada sequência. Sempre que o protagonista tenta fechar a guia em que o vídeo está aberto, ela surge novamente e mostra o mesmo vídeo, mas com o som e imagens tratados a fim de intensificar a atmosfera de terror progressivamente. Uma das mulheres ganha uma listra preta pixelada na altura dos olhos, para que não possamos mais vê-los. Outra, tem a velocidade do momento em que olha para a câmera, diminuída. São colocados efeitos que super expõem e invertem as cores da imagem. A risada do apresentador fica mais grave e demorada, quase demoníaca, acompanhada de chiados, próprios de TVs antigas, que se amplificam. Através das legendas do vídeo, a tal entidade fala com o protagonista: “Ela seguiu em frente, não é? / Te abandonou aqui”.
É nesse aproveitamento dos elementos digitais, que surgem na intenção de desgastar e distorcer as imagens e sons e salientar a experiência do horror, em que reside o grande mérito do filme: sustentar essa suspensão tensa durante toda a sua duração. O filme não se interessa pelo susto, mas pela sua expectativa, então a tensiona o máximo que pode. Assim, o terror vem mais do estranho gerado pela distorção das imagens e da imanência do susto, do que de qualquer grafismo — dispensável, diga-se de passagem —, da figura do fantasma.
Dentro desse jogo com a própria obviedade, o filme se estrutura de forma bem feita dentro dos moldes mais tradicionais do terror: a construção da tensão é gradativa e o horror vai tomando conta aos poucos até que se torna sufocante, como a assombração que aparece a cada plano mais próxima do protagonista sentado na cadeira; o cenário mal iluminado, de onde surge a criatura e a própria forma da criatura de ficar parada, com o pescoço “quebrado” para o lado, com o cabelo tampando a maior parte do rosto, criam a desumanização da personagem e ajudam a situá-la entre a vida e a morte. Caracterização que se assemelha à Samara de O Chamado e a própria menina do O Exorcista, longas de terror usados incansávelmente em piadas online à ponto que suas personagens ganham significados para além da existência em seus respectivos filmes e que parecem, de alguma forma, estarem referenciados aqui.
Saber com o que o filme dialoga e entender os porquês das escolhas torna o curta mais humorado, embora ele se situe completamente sobre o gênero do horror. O diálogo com referências cibernéticas também corrobora para uma certa nostalgia de época, afinal esse estilo de trollagem já não é mais tão corriqueiro. Já se repetiu vezes o suficiente para deixar de ser surpresa e quase ninguém ousa mais clicar em links recebidos por anônimos. O facebook, lugar em que essa atividade alcançou um âmbito mais direto das relações interpessoais — diferente do que acontecia nos blogs e fóruns em que uma pessoa postava para vários anônimos —, perdeu mais da metade do prestígio de uma década atrás. A experiência da internet é tão volátil que nos permite sentir nostalgia por símbolos disseminados há tão pouco tempo e o filme funciona muito bem nesse lugar. Não é difícil enxergar por trás das imagens, realizadores que cresceram na internet ao mesmo tempo que eu e tratam com o mesmo humor (e terror) algumas experiências cibernéticas que vivemos.



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