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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

A Vida Passa Tão Rápido

  • Foto do escritor: Kevin Campião
    Kevin Campião
  • 5 de nov.
  • 5 min de leitura

Por um acaso da vida, poucas horas antes de assistir ao filme sobre o qual me debruçarei nesta crítica, me deparei com o episódio piloto de A Cadeira (“The Chair Company”, 2025). Ali, uma cena em especial me chamou a atenção. Procurando uma música emotiva para a apresentação do jantar de ensaio do casamento de sua filha, Ron, o protagonista, encontra “I Got a Name”, de Jim Croce, no Youtube e começa a ler os comentários. Em um deles, um rapaz dizia se lembrar de ouvir essa canção no banco de trás do carro de sua mãe e conclui: “a vida passa tão rápido”. Ao som dessa melodia, Ron volta a rolar pelas fotos de sua filha, de sua família, com lágrimas nos olhos. É justamente essa ação de revisitar antigas imagens que impulsiona a catarse desse momento e que também move “Crônica de uma casa vazia”. 

O filme inicia com planos de Seu Francisco e Tio Toninho capinando o terreno, um vislumbre da casa que está sendo construída e uma pequena muda de pé de laranja. Vemos as crianças se divertindo, correndo pelo quintal e interagindo com o cachorro. Já dentro da casa, acompanhamos Tio Toninho e Dona Anita puxando uma empoeirada tábua de madeira e presenciamos uma leve interação entre ela e Janete, sua filha. A mãe se senta na tábua e Janete diz que ela está muito suja; Dona Anita se levanta, chama a filha por um apelido e as duas caem na risada. Enquanto Seu Francisco descansa e Tio Toninho descasca uma laranja, o garoto sentado entre eles, provavelmente filho de Tio Toninho, faz uma graça para a câmera. Após um plano de Dona Anita preparando a comida, o curta avança para o Natal de 1997 e nos mostra Seu Francisco chegando vestido de Papai Noel. Sentado em sua poltrona, ele distribui presentes para seus netos enquanto toda a família participa desse momento. A última pessoa a quem ele entrega um presente é Dona Anita, sua esposa. Ela se senta em seu colo, como uma criança, e os dois sorriem.

Recorri a essa razoavelmente extensa descrição das sequências inaugurais da obra a fim de ilustrar o quão terna é a construção atmosférica feita nos primeiros minutos de projeção. Há uma doçura muito acalentadora nessas imagens. O campo se apresenta como uma paisagem serena e a casa, por mais simples que seja, se demonstra como um lugar de aconchego. Porém, ainda mais do que no espaço observado na tela, a vivacidade dessas cenas se encontra sobretudo nas interações entre aqueles que o habitam. Os sorrisos que vemos nos rostos das personagens, seja durante uma conversa entre mãe e filha ou na inocente alegria das crianças ao receberem seus presentes, possuem uma sinceridade contagiante. A pureza e a afetuosidade dos registros nos colocam dentro daquele ambiente, como se fossemos um membro da família. A sequência do Natal, em particular, provoca uma forte identificação ao remontar às típicas reuniões familiares que são (ou eram) muito comuns a boa parte da população brasileira. 

Esse instante inicial do filme, que me chama a atenção inclusive pela qualidade das filmagens — todo o carinho testemunhado nas interações pelo visto também se fez presente na preservação das fitas, que apresentam imagens muito nítidas e um som inteligível, ainda mais considerando que se tratam de gravações de quase trinta anos atrás —, é marcado por um caloroso sentimento de nostalgia, uma ternura similar à que o protagonista da série que comentei no início sentiu ao olhar as fotos de sua família. Porém, o curta não se limita à felicidade dos bons momentos vividos e vai além, propondo um forte misto de emoções.

Avançamos para 2002, na festa de aniversário de Dona Anita. Após cantarem o parabéns, os casais começam a dançar, e o foco permanece na aniversariante e Seu Francisco. Eles bailam não ao som de Jim Croce, mas de Lourenço e Lourival. A escolha de “Como Eu Chorei” adiciona uma rica camada ao que vemos na imagem. Essa cena, com quase todos dançando e alguns ali esboçando sorrisos, acompanhada de outra música, poderia ser mais um momento de alegria, mantendo o filme na mesma tonalidade de antes. Mas a neutralidade na expressão do casal em destaque enquanto dançam, atrelada ao pesar da letra dessa canção que versa sobre o término de um relacionamento, despertam, ao menos em mim, uma certa melancolia. Todos esses elementos imagéticos e sonoros, em sintonia, parecem antever uma futura ausência, o vazio referido no título. A sensação é a de que estamos testemunhando uma última dança. Quantas histórias estão envolvidas naqueles passos? Por mais irônico que pareça, justamente durante uma celebração da vida, do instante presente, somos levados a pensar nas vivências passadas e no vindouro fim.

No último ato, se assim é possível dizer, esse fim se concretiza e a obra, ao meu ver, cresce ainda mais. O uso das imagens contemporâneas amarra tudo o que foi apresentado até então ao escancarar a brutal passagem do tempo. Vemos a casa finalizada, já pintada, mas inabitada. Esse espaço, que antes trazia aconchego, começa a evocar uma certa incompletude. Sem quem que fazia dali um lar, parece faltar algo, muito mais do que um literal vazio espacial. A fala final do filme, inclusive, proferida pelo Tio Toninho em outro momento daquela antiga gravação em que ele descascava uma laranja, versa diretamente sobre a questão da perda. “Esse negócio de vídeo”, diz ele, “depois que a pessoa morre, não gosto muito de ‘vê’ não”. Vale ressaltar, aliás, como essa afirmação adquire um tom metalinguístico ao ser reapropriada para o curta, que vai na contramão e encara de maneira frontal as fortes emoções que antigas e saudosas imagens de entes queridos podem suscitar.

O choque entre passado e presente proposto pela montagem, em minha opinião, é a maior força do filme. Logo após a fala citada, o registro do jovem Tio Toninho é sucedido por uma gravação dele nos dias de hoje, já com cabelos grisalhos. Em seguida, vemos aquele que, para mim, se mostra como o plano mais evocativo da obra. Dona Anita, aparentando bem mais idade e apresentando uma expressão um tanto quanto fechada, caminha lentamente por aquele mesmo corredor em que ela e sua filha, anos antes, interagiam com leveza. O enquadramento utilizado, aliás, é praticamente igual ao da fita vista no começo da projeção — consciente ou não, essa escolha cria um paralelismo entre os planos que fortalece o impacto emocional da passagem do tempo. Não posso, de forma alguma, pressupor o que Dona Anita estava sentindo no momento em que foi filmada. Porém, toda a condução do curta me leva a enxergar em seu rosto o peso da ausência, o qual se intensifica no plano seguinte, quando contemplamos a poltrona de Seu Francisco — a mesma em que ele estava sentado em 1997, vestido de Papai Noel, entregando presentes — vazia. 

Perpassando pela doce nostalgia dos encontros familiares e pela melancolia dolorosa da perda, “Crônica de uma casa vazia” realiza uma articulação poderosa e muito bem feita das imagens de arquivo vistas na tela. Para além de despertar uma gama de emoções, ele possibilita o levantamento de valiosas reflexões sobre o tempo e me conduz a uma conclusão: a vida realmente passa muito rápido.


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