Com uma duração de aproximadamente 4 minutos, Patuá desvela-se como uma obra cinematográfica de encantadora magnitude, conduzindo-nos com maestria a uma imersão profunda nos recônditos do universo espiritual e do sentimento amoroso, transcendendo as efêmeras barreiras que separam a vida e a morte. A trama gira em torno de Maya, protagonista que busca desesperadamente quebrar uma maldição que a atormenta. Sua tentativa de libertação a leva a invocar o espírito de Ayo, um antigo amor que um dia partiu seu coração. A jornada subsequente os conduz a Olorum, onde, com a orientação das ancestrais, meticulosamente confeccionam um Patuá, um amuleto de proteção espiritual. Logo de cara, é nítida uma forte representação da mistura das culturas indígena e afro-brasileira muito bem retratada.
Desde o seu primeiro momento, quando a câmera se inicia em um tilt ascendente, cujas bordas se adornam com um desfoque meticuloso, entrelaçando-se harmoniosamente com a trilha sonora suave, mas de grande potência, na interpretação singular de "Ponto de Pomba Gira", os elementos dessa composição criam uma atmosfera intrigante que me envolve de forma sedutora, fazendo-me sentir quase como se estivesse sendo transportado para o próprio ritual com Maya. Ao início da narrativa, ouvimos a voz de Ayo conversando com Maya e em seguida nos é apresentada uma figura misteriosa, que por sua vez, serve como uma representação física para o espírito de Ayo que conversa com nossa protagonista.
Talvez minha mente, influenciada pelo cinema hegemônico estadunidense tenha me levado a uma dúvida um tanto ignorante, mas ao ver essa representação de Ayo, não consigo me escapar da figura da criatura The Pale Man de Guillermo del Toro em seu filme "O Labirinto do Fauno". Apesar de se manter apenas como uma homenagem, o curta-metragem, que preza por ser manifestação da cultura brasileira por excelência, me faz questionar a obra e a faz perder, por um ínfimo momento, um pouco da força cultural ao fazer referência à produção estadunidense
Os planos desenrolam-se com uma certa serenidade, a ausência de ação mais ativa somadas a uma câmera mais próxima que se concentra nos detalhes do rosto, das expressões e das ações da personagem principal me convidam a uma conexão profunda com a protagonista. Assim me fazendo contemplar sobre minhas próprias experiências e emoções em relação às da protagonista, me prendendo ainda mais na narrativa.
Mesmo que o cenário pareça despretensioso, sua importância é indiscutível para a construção atmosférica da obra. A paleta de cores, com seu tom esverdeado, me insere em um ambiente acolhedor e reconfortante, me induzindo a um estado de tranquilidade que parece quase hipnótico. No entanto, a presença demarcada das sombras desafiam a tranquilidade inicialmente percebida, adicionando uma sensação mais mística e misteriosa. Essa combinação habilidosa de elementos visuais faz com que o cenário se desdobre para mim não apenas como um local onde a história se desenrola, mas uma entidade que contribui ativamente para a trama, transformando o cenário em uma moldura essencial para o plano espiritual que se desenrola diante de meus olhos sem quebrar o encanto que as personagens exercem sobre mim como espectador.
Em um momento subsequente, Maya revela um objeto intrigante em seu peito, tingido de vermelho e envolto por raízes complexas, sou levado a ver esse objeto como se fosse o próprio coração da personagem. Ayo estende a mão na direção desse "coração", como se estivesse prestes a extrair esse órgão vital de seu corpo e por sua vez sugerindo a possibilidade de extrair as lembranças de sua relação. A reação calorosa de Maya ao toque de Ayo sugere o desejo de mantê-la perto e preservar essas memórias, mas sua expressão de conflito interno me suscita que ela também está ciente da necessidade de seguir em frente. Esta cena me evoca uma dualidade de sentimentos realista e comovente, onde me vi no lugar de Maya, dividido entre o desejo de manter algo precioso próximo a mim e a necessidade de seguir em frente com minha vida.
Esse momento crucial é marcado logo em seguida por uma transformação tonal e uma mudança no ambiente circundante. O verde predominante é invadido por uma vibrante tonalidade rubra, como se a própria atmosfera respondesse às profundezas da emoção de Maya. Ayo, que anteriormente se assemelhava à enigmática criatura de Guillermo del Toro, se metamorfoseia em uma silhueta, quase desaparecendo na penumbra do cenário sombrio. Os olhares entre Maya e Ayo nesse momento transcendem a atuação convencional; a performance de Maya (Wara) é sutil, mas de uma potência magnética. Ao vislumbrar a sombra de Ayo, Maya gradativamente sucumbe às torrentes de suas próprias emoções, lágrimas escorrem e ela se aproxima de Ayo para um beijo de despedida. Após esse caloroso momento, Maya envolve os braços em torno de Ayo, num gesto que mescla a despedida com a relutância de deixar partir. A meticulosa construção desse momento costura uma atmosfera de reflexão profunda, transportando-me para o cerne desse instante íntimo, onde Maya se prepara para, de fato, despedir-se de seu amor.
Uma elipse mais abrupta ocorre. O tom avermelhado some de minha vista, sendo substituído pela predominância da natureza esverdeada, entretanto, em contraste com o cenário inicial da obra, há uma alta incidência de luz que me fez sentir como se estivesse flutuando em um mundo onírico. Essa superexposição da luz faz com que eu me sinta transportado a uma espécie limiar entre dois mundos, entre o real e o espiritual junto das personagens principais, que por sua vez, ficam frente a frente com figuras que presumo devido a sinopse, serem as representações de seus ancestrais dando auxílio no processo final do ritual.
Passamos por mais uma sequência nesse ambiente, a câmera roda em seu próprio eixo, fazendo-me sentir de maneira análoga ao primeiro plano da obra, como se tivesse sido convidado a fazer parte de um segredo ancestral, testemunhando um encontro transcendental entre o humano e o divino.O ritual se conclui, a câmera me joga para baixo com um tilt descendente, como se tivesse sido puxado de algum plano acima do material junto de Maya, que pela primeira vez na obra esboça sorriso singelo enquanto toca em um amuleto que substitui o que representava seu coração previamente. Essa troca silenciosa do objeto se soma à mudança da aura de Maya, que agora pode seguir em frente com sua vida.
Patuá, sem dúvida alguma, representou para mim uma experiência profunda e apaixonante que mergulhou nas dimensões da emoção e da espiritualidade. Devo admitir que, normalmente, tenho dificuldade em me conectar com histórias que abordam esses temas, entretanto ao ver a obra fui levado em um transe onde o amor e a espiritualidade se entrelaçam de maneira tão íntima que sinto ter tocado nas profundezas de uma parte da minha própria essência que, muitas vezes, deixo de lado.
Além disso, o curta-metragem me fez refletir profundamente sobre como o medo de deixar partir alguém que amamos é uma prova da profundidade das nossas conexões e da importância das pessoas que fazem parte de nossas vidas. Essa obra se desdobrou para mim como um lembrete íntimo da minha própria vulnerabilidade e da minha capacidade de amar. Mostrando que embora ela possa vir a ser uma das experiências mais desafiadoras que poderia encarar, ela também carrega consigo o potencial para o meu crescimento pessoal, renovação e a possibilidade de novas conexões e experiências que, muitas vezes, não consigo imaginar enquanto me agarro ao passado.
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