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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Foto do escritorMarco Antônio Bonatelli

Um Conto de Terror

A premissa de Caixinha de Música me deixou na defensiva. Um projeto animado sobre uma jovem dançarina que sonha em fazer uma apresentação de balé clássico, mas não consegue atender às expectativas de sua professora e acaba tendo os seus desejos realizados por uma fada, realmente não me pareceu um bom rumo para um filme seguir. Num primeiro momento, pensei estar assistindo a mais uma estória de princesa fútil e que não levaria a lugar algum. Ledo engano. Acabei encontrado aqui o melhor projeto sobre o qual eu fui designado a escrever – e um filme que julgo ser verdadeiramente bom. Eu não vi as 27 obras que entraram na seleção oficial do festival, mas acho que esta deve ficar no topo da minha lista de preferidas na sexta-feira (último dia do Desver). Mas vamos por partes.

Tirando o elefante da sala, devo dizer logo de cara que de fato a animação não é tão polida quanto poderia. Eu sei que esta técnica exige um esforço hercúleo para sua realização, e fazer isso como um TCC deve ter dado um trabalho infernal para os animadores, mas, ainda assim, penso que isso não pode ser completamente desconsiderado. Agora, também devo dizer que vejo isso como um problema ínfimo, e digo isso porque, ao longo da exibição, ficou claro para mim que esta decisão estética foi das mais acertadas. E digo isso porque ela não se encerra em si mesma – muito pelo contrário – e ajuda a sustentar a obra, em grande medida, enquanto experiência cinematográfica. Seja na escolha de dar um rosto somente aos personagens relevantes (a menina, seus pais, a professora, a fada...), direcionando nossa atenção a quem interessa, ou no posicionamento de objetos de cena que nos ajudam a adentrar a narrativa a partir de uma perspectiva iminentemente lúdica (o calendário, o relógio, as fotos da academia de balé...), esse elemento se faz presente. O projeto como um todo, dessa forma, acaba abraçando o seu caráter de curta desde a concepção e potencializa os caminhos pelos quais pode seguir.

Não obstante, muito do fantástico que se busca evocar (um mais clássico, como o das princesas da Disney) também se pauta nisso. A fada, o horror da transformação final, o espetáculo grandioso no teatro... tudo isso ganha vida através dos traços da diretora, Ana Carolina do Monte, e dos outros dois animadores, Ana Luisa Alessandri Torres e João Francisco Neto. Então, relevar um apuro técnico e um domínio do traço maiores se tornou quase uma obrigação para mim, uma vez que não consigo imaginar como eles poderiam seguir os mesmos beats de roteiro e criar o mesmo clima lúdico caso optassem por realizar o filme de forma naturalista.

Além disso, destaco como ponto que me incomodou o ritmo da obra que, em diversos momentos, vai contra o pedido do texto por uma condução mais ágil – alguns planos se alongam demais e não parecem se justificar dentro do todo (levando o olhar do espectador, invariavelmente, à animação que, de novo, não é das mais belas). Eu também tive problemas com o som em dois momentos em específico: a inserção das vozes na rua quando a menina sai do balé e o uso das músicas que conduzem a narrativa. O primeiro ponto eu cito porque, no restante da obra, não há quaisquer inserções de vozes humanas, com tudo sendo narrado através de imagens (de forma invejável diga-se de passagem, mas volto nisso mais à frente), e o posicionamento deste recurso, mesmo que de fundo, quebrou um pouco o clima do fantástico para mim (um que, até então e a partir desse momento, recusa a fala e deixa a condução lírica na mão da trilha sonora); e, o segundo, porque contribuiu para o texto ser freado em diversos momento – principalmente pela falta de uma integração maior entre as obras clássicas (os silêncios e os sons de foley posicionados sem a condução das músicas não me parecem fazer bem ao projeto uma vez que, de novo, tiram um pouco do nosso investimento deste mundo pueril).Mas, ainda no que se refere às músicas, devo dizer que a transição do infantil para o macabro se dá de maneira muito eficiente, com seus setups e payoffs devidamente posicionados e segurando tudo.

Outro momento bastante positivo é o fechamento do curta (bastante inesperado, em minha opinião), que surtiu um efeito bem pronunciado em mim. Isso também se dá – como ficará evidente para quem assistir ao filme – por conta do nosso investimento com a protagonista que, por mais que seja genérica por boa parte do tempo, sustenta bem a nossa torcida (ela vai conseguir o que quer ou não?). O fato de ela ser posicionada como uma menina meiga, fofinha, decidida e aparentemente excluída também ajuda, claro – e poderia ser até um roubo da diretora para nos conquistar. Mas isso não se concretiza a partir do momento em que a protagonista ganha novas camadas na virada para o terceiro ato e se prova, em certa medida, egoísta e mal-agradecida.

Mas, afinal, ela se trata de uma criança, e então fica difícil imputar culpa às suas ações (e eu acredito que essa seja mesmo a palavra) infantis. O que se tem, portanto, é mais do que uma única camada e, felizmente, isso também se aplica à fada. Algoz da protagonista, nós entendemos o seu sofrimento a partir do momento em que é sugerido que ela estivera na mesma posição que a menina e cometera os mesmos erros. O “monstro” aqui é o ciclo interminável – e que sabe-se lá como começou (a velhinha também era uma bailarina?) – que esta caixinha maldita proporciona. E descrevo o ciclo como interminável porque, de novo: que criança poderia vencê-lo, sendo seus atos essencialmente infantis?

O efeito proposto de horror se solidifica, então, na condução da própria narrativa (os já citados setups e payoffs), que dá pistas quanto à tragédia que vai se suceder (no olhar da idosa, por exemplo), mas nunca abandona o seu mistério por completo. Isso se reflete, inclusive, na forma com que tudo é contado: o calendário com um dia especial marcado; o relógio e o olhar reprovador que denuncia um atraso; o gesto de gratidão da menina e a subsequente ira da fada, que são construídos juntos e bem amarrados no clímax. Tudo isso contribui para que sintamos o poder dos contos sem atentar contra a possibilidade de se fazer algo novo.

E com isso eu não quero dizer que esta obra é revolucionária, de forma alguma (a Pixar já fez algo bem parecido com essa proposta há não muitos anos atrás em Alma, por exemplo). A própria noção de dar uma guinada inversa no que se espera de um conto de fadas tem em Tolkien, talvez, o seu maior escritor. Mas esse não é o ponto. O que destaco aqui é essa execução bem-feita de uma ideia fresca para o cinema nacional. De novo: eu não achei o filme perfeito, mas gostei bastante do que vi, e quero ver os projetos futuros de do Monte. Ela não dá um passo maior que as pernas e nem apresenta pretensões desmedidas em Caixinha de Música. Não. Ela faz o simples com uma primazia impressionante e, às vezes, esse é o mais difícil de se fazer.

Talvez eu seja suspeito para elogiar esta obra porque estudo o fantástico de perto e sou um fã declarado da estrutura arquetípica enquanto forma. Mas, se for o caso de eu estar cometendo algum excesso, convido a todos para assistirem à Caixinha de Música e me expor isso. Até lá, fico pensando nesse conto macabro que me fora apresentado – e matutando se seria possível ou não (e como, caso em caso positivo) a maldição retratada poderia ser quebrada.

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