É magnânima ver a maneira com a qual Arthur Pereira, diretor de Ucronia, trabalha a questão do tempo e da cronologia das ordens naturais da vida. O humano já está cansado de nascer, viver e morrer. Da forma mais cinematográfica possível, dentro do exequível, o realizador nos mostra que domina os mecanismos da linguagem do cinema necessários para transmitir ao público que, para ele, tempo e caos são sinônimos igualmente destrutivos.
O curta inicia com um trecho de O Espelho, conto de Machado de Assis que celebra questões filosóficas e despende de argumentar sobre como cada pessoa porta duas almas dentro de si. Uma externa e uma interna, as duas dependentes entre si. Jacobina, o protagonista do conto, elucida uma breve passagem da história de sua vida e testemunha que há muito estava perdido, sem saber o que fazer de sua alma interior, uma vez que sua alma exterior estava deteriorada. No profundo de sua solidão, o protagonista do conto vê seu reflexo disforme e difuso e o tempo parece ser uma tortura gradativa. A experiência de deixar a alma exterior corromper seu ser, de sentir o status quo dominante exaltando a reputação em detrimento da personalidade e do íntimo.
Em um fade, um recurso transitório que nega o corte seco, o curta leva o espectador a testemunhar os relatos do personagem de Machado, transvestindo a literatura de cinema. Com a baixa luz ambiente somos levados a um quarto opressor, escuro e amarelado pela cor como se também o calor fosse imprescindível para repassar a sensação de sufoco. A espacialidade do quarto entra em ação e logo se percebe que o tamanho da cama não é nada proporcional ao protagonista. O lugar que simboliza descanso é também onde a personagem se situa perdida no espaço, devorada pela sua pequenez.
Em meio a relatos que evocam a palidez humana frente à morte e a incerteza de não ter controle sobre o tempo e sua causalidade, um contra-plongée relega a posição do homem como um ser mortal sob a linguagem cinematográfica. Trazendo à tona questões metafísicas, tal como exprimidas por Machado, nosso protagonista é impelido a discutir internamente se Deus está ao seu lado e se Ele preparou algum tempo de descanso para ele. Um desenho anafórmico que remete a um terror lovecraftiano é entregue ao protagonista do curta. Uma resignação do caos materializado. A placa de “Não seja um perdedor” soa como um pedido de exílio da linguagem para transformar a imagem em segmentos de textos visuais. Textículos conotam a metalinguagem e rebaixam a montagem a um mero exercício existencial, lembrando o espectador de que tudo não passa de um filme e, portanto, logo acabará, ainda que a palavra diga o contrário. A montagem paralela eleva os personagens à uma ordem nietzschiana em que o tempo é escravo de sua própria causa e está fadado a se destruir e reconstruir a partir de seu próprio eixo. Uma espécie de entropia Vertoviana em que cada raccord traz consigo outra história. O que resta ao espectador é entender que a engrenagem necessária para dar continuidade ao curta-metragem é a mesma que faz ele acabar.
A incumbência de repetir um monólogo não escrito pelo personagem se assemelha ao papel que o criador do filme tem ao distribuir sua obra. Ele precisa levar sua criação a pessoas diferentes, sabendo que para cada uma delas um novo filme será criado. O plano e contra-plano traduz os sentimentos invasivos que os personagens sentem um pelo outro quando se percebe que os dois jamais saem de enquadramento. Não suficiente a necessidade constante de se mostrar, o close no beijo admite também a intromissão do espectador na relação. Ironicamente, quando a moça sai de quadro, percebemos a transitoriedade proposta pelo curta ao montar outro casal. A mulher se foi, o homem é o mesmo. As roupas e cabelo de outra época denotam a transcendentalidade de um homem escravizado pelo tempo que ele jamais pôde derrotar, evocando uma espécie de imortalidade ao invés de reencarnação. Seu maior inimigo é a existência. A memória é um fardo que ele deve carregar em dias cada vez mais curtos, insuficientes para se deleitar dos prazeres humanos como as artes e a religião. O grito frente ao espelho, a dança de olhos fechados e o desfoque da câmera compõem o início de uma derrocada humanista atrelada ao depoimento do narrador que percebe que viver é na verdade acompanhar o cotidiano das coisas sabendo que tudo é comum. Para ele, todos os filmes são os mesmos, e o que os faz serem diferentes uns dos outros é o quanto eles têm de sentimento para oferecer.
Ucronia se encerra retornando à metalinguagem quando traz pela última vez a figura que deu início ao processo de autorreconhecimento de seus mecanismos. O curta encontra uma maneira de transpor a passagem temporal sem raccords, mas integrando a efemeridade do desenho que gradativamente, por diversos elementos, vai se desmanchando e desbotando por meio de efeitos transitórios. Reconhecendo a quebra da quarta parede e abraçando por fim seu processo destrutivo, o filme monta uma pequena performance do protagonista dançando e pulando ao som de I Touch Myself da banda Divinyls, entre os espaços que outrora serviram de composição para a mise en scène.
Durante seus oito minutos de duração, o curta apresenta um excelente texto-base e, mais que isso, insere uma nova linguagem e um novo significado a ele. Trabalha com forma e conteúdo a primazia da imagem e apresenta meticulosamente as proposições criativas do diretor. Por fim, demonstra que a escolha do curta-metragem de encerrar com uma música que evoca erotismo em sua letra é admitir que fazer cinema é tão luxúria quanto qualquer outra arte, que o diretor precisa sentir prazer no que ele faz e que seu processo é como criar um filho e jogá-lo ao mundo. Sem nada de irônico, esse procedimento também significa matar o tempo e entender que para se criar um, outro deve ser destruído. Ainda que isso leve 180 anos.
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