Aos sons de tiros e certa confusão momentânea, a robô Elisa acorda em meio ao que parece ser a cidade de Salvador em uma versão pós-apocalíptica. O cenário que se desenrola diante de seus sensores é assustador e intrigante. A Salvador que ela conhecia, com suas praias, música pulsante e cultura rica, agora se assemelha a um pesadelo distópico.
Lixo revira a cidade, com diversos grafismos que dizem “Quem assinou o papel do apocalipse?”, “Salve-se” e tantos outros. As palavras e imagens pintadas nas paredes, algumas com cores já desbotadas pelo tempo, refletem a angústia e a desolação que se espalharam na cidade outrora vibrante. Elisa, com seus olhos eletrônicos, observa atentamente as mensagens, buscando pistas sobre o que aconteceu.
Um certo folder chama sua atenção, promovendo uma versão alternativa da conhecida capital de efervescência cultural que é Salvador. Nele, o lema é “De folia e fuligem” e estranhamente, bombas são representadas ao seu redor. O equilíbrio entre festa e destruição, antes tão característico do imaginário da cidade para quem está de fora, agora é retratado de maneira sombria. Seria essa visão distorcida o resultado de uma catástrofe real ou apenas a interpretação distorcida de alguém que sobreviveu aos eventos? A obra abre esse espaço para questionamentos quando nos apresenta esse mundo onde nos sentimos tão perdidos quanto a robô.
Elisa anda.
Enquanto ela continua a explorar o ambiente caótico, encontra nas paredes diversos outros folders com anúncios diversos. Alguns deles nos remetem a tempos sombrios. Cartazes que anunciam pessoas desaparecidas, avisam sobre perigo radioativo e mostram até mesmo um agiota oferecendo dinheiro em inúmeras parcelas com juros exorbitantes. Um comentário pertinente acerca de um mundo futuro que carrega os medos e características do real.
(Não ironicamente, tem um cartaz de uma agiota perto da minha casa oferecendo R$5.000,00 na hora com 12 parcelas de R$689,70 – o que eu nem sei quanto daria).
A jornada de Elisa a leva finalmente a um edifício que parece ser um laboratório. Através das janelas empoeiradas, ela vislumbra equipamentos de alta tecnologia e estruturas que lembram um antigo local de pesquisa. O que chama ainda mais a atenção de Elisa é esse cientista. Um retrato antigo o mostra e o que parece ser sua família, além de um plano para fazer sua experiência dar certo.
A voz do rádio antigo ao fundo traz uma sensação de nostalgia. Alguém está na escuta? Nos colocamos dentro das aflições de Elisa, podendo nos perguntar se há outros como ela, robôs que mantiveram sua consciência e humanidade em meio ao caos que envolveu o mundo.
Porém mais que tudo, existe algo para ser salvo?
O curta-metragem animado, realizado em stop-motion, apresenta uma narrativa intrigante e cheia de nuances. O olhar da direção, que explora esse mundo através da direção de arte, coloca Elisa como exploradora desse mundo pós-apocalíptico e enfrenta o mistério do laboratório, com a possibilidade do questionamento da natureza, memória e identidade. A partir de um olhar da existência do ser dentro da máquina, será que a transferência de memória é possível? E, se for, o que isso significa para a definição de humanidade? Haverá um espectro de dor ante a essa nova concepção do que é ser humano.
O filme nos leva a refletir sobre questões que têm sido amplamente debatidas em obras de ficção científica ao longo dos anos. Desde o clássico japonês Ghost in The Shell (1995), que explora a fusão de humanos e máquinas, até as diferentes versões de Blade Runner (1984 e 2017), que investigam a humanidade dos replicantes, e a inevitável comparação com WALL-E (2009), que aborda a relação entre a tecnologia, a degradação ambiental, e o papel do capitalismo entre eras.
Elisa é um filme que desafia o espectador a mergulhar em questões filosóficas e éticas profundas, mesmo em sua curta duração. Quase sem diálogos, a narrativa evita conclusões óbvias. A pichação na entrada do laboratório, que diz "criminoso", deixa espaço para interpretação. Seria um comentário direcionado ao pai de Elisa por sua busca pela imortalidade ou uma crítica a outro protagonista, possivelmente algum ser que desempenhou um papel crucial na catástrofe que assolou o mundo?
A direção de arte do filme merece destaque. Apesar das poucas locações, ela consegue imergir o telespectador em um evento apocalíptico de escala global. Cada detalhe meticulosamente concebido, desde os grafismos nas paredes até os equipamentos no laboratório, contribui para a atmosfera distópica e sombria do mundo de Elisa, rejeitando conclusões fáceis, mas nos apresentam um mundo rico e que merece ser revisitado. A habilidade de criar um ambiente tão rico e cheio de detalhes é retratado mediante um tom constantemente de suspense, que nos mantém atentos aos próximos passos da robô em busca de respostas.
Apesar de haver um componente emocional, a obra não abraça uma possível melancolia de uma relação partida cientista e filha, mas imerge o telespectador em um mundo desolador. O final abrupto deixa o telespectador como Elisa: buscando entender tudo que passou até ali, e o mais importante, como se dará o futuro de tudo isto.
Esses debates se entrelaçam, demonstrando a habilidade da diretora Letícia e sua equipe em conseguir trazer um mundo desolador, uma bomba emocional – ao nos entregar uma informação relevante e deixar o telespectador buscar desvendar isso – e um resquício de esperança em uma obra tão enxuta. Mais que isso, a técnica usada, misturando stop-motion e animação 2D, é perfeitamente complementar, apresentando tempos distintos, o passado e presente deste mundo.
Nos créditos finais, a possível melancolia citada anteriormente dá as caras com uma bela trilha que traz mais questionamentos sobre o futuro de Elisa. O experimento foi um sucesso e restou ela no mundo? Mas e agora?
Assim como obras com temática semelhante, como fica o papel deste ser humano dentro da máquina. Seria ele possivelmente imortal? E seria isso algo bom? Para onde ir se não existe mais nada, se nenhuma experiência humana e coletiva será construída?
O curta soma ao debate que vem ocorrendo sobre inteligência artificial e transhumanismo através do elo familiar que pode ser questionado, sobre este “complexo de Messias” que salvará a todos, mas que no final aparenta trazer mais amargura, dor e solidão para um futuro inexistente. Apesar do grande interesse em saber mais sobre este mundo e das ramificações do futuro de Elisa, é bastante satisfatório que a obra use de sua poderosa composição visual para nos imergir neste mundo e suscitar reflexões pertinentes através de seu mundo soturno e sombrio, mas com margens de esperança – para aqueles que creem.
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