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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

  • Foto do escritorMarco Antônio Bonatelli

Sonhos em Bytes

Aviso: este filme possui imagens estroboscópicas (informe do realizador).

No primeiro plano do filme, vemos o documentarista segurar a câmera de seu celular contra um espelho. Surge em tela, como resultado, um loop de imagens sobre imagens proliferando-se com o movimento do dispositivo e capturando os reflexos infinitos. Já nesse momento há uma forte intervenção do digital, possibilitada pela pós-produção que conduz os rastros de cada frame a dançarem livremente como fantasmas de luz perante aos nossos olhos. No off, ouvimos a voz sintetizada de alguém dizer várias vezes que “não pode gravar”. Essa é uma das únicas duas coisas que o curta vai nos contar de forma objetiva: não é permitida a captação de imagens dentro da locação em que o filme se passa; e a segunda é que o espaço pelo qual flutuaremos é uma balada gay. É então que as imagens de todo esse início se perdem num manancial caleidoscópico e viram ruído, daqueles de TV velha mesmo. A intervenção sobre o filmado, antes um exercício de estilo, ganha um novo significado a partir desse momento, mas deixo para desenvolver o ponto mais à frente. O que importa é percebemos que esse tipo de abordagem, que ataca de frente o material bruto, será constante ao longo de todo Das Memorias Que Eu Guardo Em Bytes. Adentrarmos esse espaço e encontramos uma espécie de documentário experimental que mistura várias tendências e estilos diferentes torna a coisa toda mais interessante.

A boate em questão fica no Ceará, e toda a minha experiência com a obra foi afetada pelo fato de não ter Felipe, diretor do filme e amigo querido, por perto durante os seis meses em que ele esteve intercambiando no estado nordestino. Eu me lembro bem da sensação de vazio deixada por sua partida que não pude ou posso apagar. Tendo isso em mente, fiquei feliz em ver Felipe se divertindo e sendo ele mesmo. Talvez esteja aí a grande questão para mim. O filme aposta numa sinceridade brutal ao não propor muita abertura para que se busque uma compreensão assertiva de suas imagens ou coisa do tipo. Deixa de ser pretensioso por conta disso? Não, mas é um ideal apresentado que corre ao longo de toda obra sólido o suficiente para se manter de peito aberto, mantendo guarda. Assistimos às imagens de película sendo destroçadas pelo digital como numa revisita ao analógico, um cowboy fazendo seu show de strip sem muito contexto e a representatividade fluir pela tela sem sacar uma bandeira política para isso. Dessa forma, o foco recai exclusivamente no processo autodeclarado de realização que se apresenta.

As imagens assistidas não são as mesmas que foram filmadas por conta de toda essa intervenção feita por Felipe. Creio que isso se justifica a partir do momento em que passar a sensação de contato humano que temos num espaço como o da balada pela tela de cinema, celular ou televisão seja impossível. Infelizmente ainda não chegamos no Cinema 50D. Também era impossível, há uns trinta e poucos anos atrás, que as imagens como as que vemos aqui pudessem ser capturadas – tanto pela inexistência do formato utilizado quanto pelo preconceito que impedia que uma balada gay desse tamanho fosse levantada em nosso país –. O filme busca, assim, se lançar nessa experiência de ir de um cômodo a outro, numa abordagem quase tátil, potencializada pelo digital. Como já dito, as luzes, os sons, os movimentos, nada disso me parece ter um significado próprio, e cá estamos nós vendo esses registros que ganham vida de novo e de novo ao serem liquidados por sobreposições e zooms digitais. Assim, a questão na qual nos encontramos torna-se, ela toda, o filme. Assumimos a posição quase de espectros, Felipe e eu, revivendo um tempo em que eu não estava presente e ele deixou para trás a cada novo play que damos em nossos aparelhos de reprodução. Quero dizer com isso que cada um sabe da diferença entre dançar sozinho no quarto e fazer o mesmo no meio de um monte de gente. Eu diria que a maioria dos filmes experimentais que já assisti almejam proporcionar o segundo tipo de experiência. Aqui, contudo, se apresenta um caso distinto que usa de suas imagens para mostrar que talvez pagar de bobo aos olhos de ninguém também não seja lá de todo mal.

Dessa forma, tudo segue sem que haja o sentimento de que a filmagem pode ser interrompida ou a festa vá acabar pelo motivo que for. Não. É só a imagem pela imagem e os sons pelos sons e tudo bem, vamos com isso. É vazio em algum sentido? Se quisermos, sim. Mas eu então lanço a pergunta: não é melhor fazer um filme que reflita a liberdade do poder o que quiser num espaço de liberdades, mas que ainda impõe uma restrição (não pode filmar) e ficar por isso mesmo do que se arriscar num ideal à la Barca e falhar miseravelmente? Do que cair no moralismo estúpido da maior parte da classe artística contemporânea? Eu penso que o filme acaba, ao contrário, nos fazendo sentir que somos especiais, pelo menos para nós mesmos, de alguma maneira não especificada. Em Felipe as coisas simplesmente são, e talvez seja isso que o faça acabar se aproximando do poético. Ele não força a rima, apenas deixa que ela flua e vê no que dá. E já que entrei no terreno, parte do que constitui a ideia central da obra do poeta espanhol citado acima é também, para mim, essência do que é o filme, guardada as devidas especificidades e proporção, claro. Daria pra pensar naqueles versos famosos “e no mundo, em conclusão,/todos sonham o que são,/[...] porque toda a vida é sonho/e os sonhos, sonhos são.” (LA BARCA, 1635, p. 131) e lembrar que em A Vida é Sonho (La vida es sueño) temos um ideal que nos permite almejar os horizontes do sonhar, refletindo sobre eles. De novo: cada dança ocorre num ritmo diferente quando estamos sozinhos.

Não quero dizer com isso que mergulhamos no surrealismo em Das Memórias, não é o caso, mas que a experiência vivida e irreplicável no momento da filmagem ganha seu duplo a partir da construção do filme por meio de uma abordagem onírica das imagens que conversam com cada espectador. É uma utilização da linguagem que parece constatar: se todos somos diferentes, pelo menos temos em comum o sonhar. Costumeiramente, eu argumento que algumas obras resolvem tecer críticas sociais e se esquecem de fazer o filme; de brincar com as abordagens infinitas que juntam dois frames. É justamente a esse tipo de trabalho a que me refiro como contraponto. Basta ver o momento, por exemplo, em que Felipe se encontra frente-a-frente com um paredão de pôsteres de filmes antigos. Ele grita enlouquecidamente de forma a anunciar seu amor pelo Cinema e voltamos à psicodelia do restante da experiência com um novo gás. Não porque o diretor aumenta os estímulos em tela, mas porque sentimos seu coração vibrar, embalado por aqueles papéis presos na parede e que, para ele, são especiais. O mais próximo que temos de um registro de personagem, portanto, é muito tocante à sua maneira. Depois, o documentarista volta à balada renovado e nos leva nesse transe cinematográfico junto a ele. Eu também amo filmes, por mais que não goste de balada. Ambos somos, portanto e de alguma forma, parte desse mesmo sonho. Talvez Felipe pudesse ter mantido vivo um pouco mais esse mundo criado por ele, para podermos, nessas imagens de bytes ilusórios, sonhar à nossa própria revelia em seu caráter de completude. Mas, com o que eu já disse, não é suficiente?

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