No meio das nossas rotinas diárias, onde a monotonia muitas vezes parece tomar conta, há momentos em que nos vemos subitamente viajando pelas trilhas das nossas próprias memórias. Essas jornadas espontâneas pelo passado são como atalhos inesperados que quebram a rotina das nossas vidas, proporcionando uma fuga breve, mas emocionante, do comum. O curta-metragem Noêmia e Laura, de Danielle Menezes e Iago de Medeiros, retrata exatamente essas viagens surpreendentes pelos corredores da nossa própria história, que se assemelham a máquinas do tempo, nos levando de volta a momentos tão comuns quanto extraordinários.
Primeiro, acompanho Noêmia em sua rotina, regando as plantas e pendurando roupas no varal. Ao fundo, um som mais agudo toma espaço e vai lentamente invadindo meus ouvidos, gradualmente misturando-se com ruídos. De repente, sou transportado para um varal à beira de um rio e recebo, através de um corte, um cenário que se conecta com a intrusiva construção sonora. Em um primeiro instante, confesso que me perdi um pouco do porquê isso ocorreu, mas, de forma estranha, fui cativado por essa repentina e singular mudança de cenário, mergulhando mais profundamente em minha contemplação da obra.
Em um instante a seguir, ainda encantado pelo momento anterior, Laura e Noêmia sentam-se na cozinha e começam a conversar sobre o reencontro de Laura com Murilo, um conhecido de sua infância. Eis que, em uma transição de planos, novamente sou transportado para um cenário distante do apartamento das personagens. A mesa permanece, mas o cenário seria de uma paisagem mais interiorana, me desconectando de seu entorno imediato e me desviando das palavras de Noêmia enquanto uma voz chama por Laura.
O artifício de mudança repentina de cenário, que inicialmente me parecia confusa, não foi apenas um evento isolado, mas sim uma forma do qual a obra usa para me mostrar a mente das personagens se materializando na tela. É notável como o filme constrói essa experiência subjetiva, uma montagem da cena de forma rápida e sutil me transportam para a mente de Laura fazem com que eu me sinta profundamente imerso em sua mente em um plano longo nos permite apreciar cada nuance dessa paisagem. A voz reverberante que permeia toda a cena (suponho que seja a voz de Murilo) desempenha um papel fundamental na criação de uma atmosfera carregada de suspense e curiosidade.
O elemento mais marcante, no entanto, seria a atuação de Laura (Amélia do Carmo). Nesse momento de atuação sutil, a atriz demonstra habilidade em transmitir uma gama complexa de emoções sem usar palavras. O contraste entre uma certa indisposição inicial e o olhar nostálgico é palpável e impactante. Amélia não recorre a exageros melodramáticos, mas, em vez disso, oferece uma interpretação mais calcada em um olhar mais real e contemplativo da personagem dentro de sua própria memória e me convidando a explorá-la junto dela.
Em uma elipse mais abrupta, acompanho Noêmia enquanto ela caminha pela cidade. A personagem é enquadrada de forma acentuadamente diminuta no quadro, enquanto os prédios que a cercam se elevam como uma força imponente sobre ela. Essa escolha deliberada reforça para mim os seus sentimentos de estar sobrecarregada pelas demandas da vida urbana e sua sensação de insatisfação com suas escolhas.
O momento em que Noêmia entra no teatro é de uma bela potência; o jogo de luz e sombra, também desempenha um papel essencial na criação do clima sombrio e melancólico desta cena. A mise-en-scène me dispõe a personagem em uma silhueta com apenas uma luz mais proeminente no fundo, me colocando em um ambiente soturno no qual quase a perco em meio a essa “plateia inexistente” do ambiente. Conforme ela se aproxima da câmera, aplausos começam a ecoar, uma música emerge e uma luz advinda do palco permeia quase como labaredas de uma chama permeiam o corpo da personagem e a colocam no centro da minha atenção.
Em uma mudança de plano, a música ganha intensidade e vejo uma representação de Noêmia se transformar em DJ que brilha com suas próprias luzes, iluminando a sua versão que está na plateia mergulhada na escuridão. A taxa de quadros reduzida dessa personagem e o cenário simples, mas vistoso do palco, junto com a trilha sonora excêntrica a atuação mais enérgica da atriz, me envolvem em um transe profundo enquanto presencio essa nova face de Noêmia.
Nesse momento, me senti vividamente na pele dela, idealizando sobre um outro eu, apenas sentindo breves vislumbres do brilho que talvez pudesse ter alcançado se tivesse feito escolhas diferentes. Esse sentimento ressoa na cena seguinte, na qual Noêmia, ainda imersa no mesmo transe de seus pensamentos que experimentei na cena anterior, nem percebe que chegou mais tarde do que pensava em seu apartamento, questionando se suas escolhas a levaram a um caminho satisfatório, mesmo com a recente promoção.
Ao voltar à sua rotina, Noêmia ao lado de Laura ajudando com o feitio da janta, Noêmia aumenta a música e começam a se divertir enquanto fazem sua comida. Aqui o filme parece sintetizar a sua principal mensagem, que é aceitar a naturalidade de pensamentos intrusivos, raciocínios não anunciados. Eles podem aparecer a qualquer momento e, de repente, revivemos nossas lembranças quando encontramos alguém de nosso passado. Ou podem nos fazer repensar nosso passado, como Noêmia faz, e refletir sobre o presente e o futuro. O filme, através dessa narrativa singela mas de grande potência, nos convida a entender e aceitar essa dualidade como parte inerente da nossa existência e nos convida a abraçar a complexidade da nossa própria psicologia. Assim, à medida que continuamos a cultivar o jardim da nossa mente, podemos encontrar uma maior paz e aceitação, sabendo que até os pensamentos intrusivos, que por sua vez, são como as persistentes ervas daninhas, são elementos naturais da paisagem mental que podem ser aceitos e integrados.
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