Existe um prazo de validade para as obras de arte? Será que sua influência na história e relevância na cultura da época seguirão a trilha deixada por seus criadores e público apaixonado? É esse o questionamento que permeia Cinéfilo com Causa, curta-metragem escrito e dirigido por Catarina Forbes. Aqui a diretora nos aproxima do protagonista e nos coloca sob o olhar de uma espécie de bode expiatório da experiência do espectador aficionado por cinema antagonizando com um público cada vez menos insurgente nas sessões que prefere guardar seus desprazeres e senso crítico pelo prazer da grande tela. O posicionamento de mártir pela arte circunda uma persona elevada ao estereótipo do amante das obras antigas. Um saudosista que relega a contemporaneidade do cinema e suas novas abordagens estéticas e artifícios tecnológicos por acreditar que tais mecanismos sirvam apenas como uma ferramenta de massificação cultural. Ainda que seus olhos estejam voltados à indústria cultural de outra época.
A motriz dramática do curta está na inesperada troca de filmes na sessão sem aviso prévio. Quando se espera que vejamos uma exibição de Juventude Transviada, dirigido por Nicholas Ray, temos, no entanto, a sessão cancelada para exibir Capitão Stark Episódio VI: A Queda Interplanetária, uma espécie de paródia dos filmes de super-herói que tomam conta das salas e bloqueiam o mercado, impedindo filmes de menor orçamento e recurso para distribuição de terem sua cota de tela atendida, ainda que legalmente sejam obrigados a tal. A automatização do cinema comercial contemporâneo emplaca em uma problemática de cunho econômico, quando não cultural, adulterando a indústria e saturando os profissionais.
O curta-metragem ratifica sua proposta se aproveitando da composição fotográfica baseada em jogos de luz e cor. Durante todo o filme, as cores primárias tomam conta dos espaços, adereços e figurinos. Uma mise-en-scène plástica outorgada pelo detalhamento de uma direção de arte que busca inserir a obra na mesma posição de prestígio que o clássico homenageado. O curta veste as cores do clássico de 1955 e usa o filme como um baluarte para seu argumento satírico.
Existe uma oposição entre Tiago, o cinéfilo que veste as cores do filme, e Daniel, o amigo brincalhão que está ali pela companhia e usa cinza, simbolizando sua neutralidade e desconexão pessoal com o ambiente. Tiago é a disrupção da arte, o crítico dos filmes-pipoca e do entretenimento automatizado, o repúdio à comercialização barata do cinema hollywoodiano que só se importa em reproduzir a fórmula para que o público continue enchendo as salas. Daniel é o espectador dionisíaco adepto à plasticidade do cinema digital. Para ele a cristalização do cinema é supérflua e sua preocupação está na experiência coletiva da sessão. Aqui, Daniel representa a fuga do ego cinéfilo e a despressurização do senso crítico. A experiência cinematográfica dura enquanto a pipoca não acabar.
O desenrolar do argumento partindo da comédia como sua manivela posiciona a direção em um palco satírico da gramática. A acidez do controle criativo, com muitos enquadramentos que ressaltam as expressões de desdém dos demais espectadores da sessão em relação a Tiago, imprimem na obra uma caracterização muito clara do público que tende a encher as salas dos blockbusters. Em momento algum há qualquer tipo de reação da sessão em meio aos gritos de Tiago quando descobre que seu filme favorito não será exibido. No entanto, quando por um deslize de sua raiva ele solta um spoiler, as reações de completo desprezo e incredulidade ao saber que uma personagem do filme morre transforma a sessão em um salão de debates. O público, aos gritos, crucifica Tiago. Alegar que a experiência de assistir ao filme foi estragada por uma simples informação do conteúdo invalida completamente a própria experiência cinematográfica e a função social da arte como uma epifania transformadora, alienando o público para que ele não compreenda os atos do filme e, por consequência, suas ações que sustentam e fazem a narrativa progredir, como as partes de um todo.
Um incômodo pessoal identificável no curta é a cultura contemporânea dos spoilers, construída principalmente por essa massificação do entretenimento que só busca o fim do filme como uma espécie de ascensão e assume um imediatismo do prazer que não cabe ao espetáculo artístico no qual o cinema está inserido. É segurar os suportes da poltrona nos minutos de extrema ação e suspense, mas também se acalmar com o filme quando a resolução e as pausas dramáticas acontecem. A crítica ao spoiler e à comercialização barata e reciclada dos filmes-verdes de atualmente não é a opinião restritiva de Tiago para julgar o que é arte ou não. É entender que o entretenimento não exatamente precisa consentir às normas e padrões estéticos e conceituais do que socialmente depreendemos do que é a arte, mas interferir na ideia de que o cinema como entretenimento em detrimento da arte não existe. A valorização do comércio está no lucro, mas não impede que sua estratégia para adquirir tal feito seja do desleixo intelectual. Ou tudo é spoiler ou nada é spoiler.
Por fim, entendo que a crítica satírica de Cinéfilo com Causa resida na tipificação do personagem obsessivo que precisa satisfazer seus desejos religiosamente e das consequências ao ter seu ritual anulado. Toda a conjetura cinematográfica dos movimentos das câmeras, dos enquadramentos e da mise-em-scène corroboram para a criação de um espaço pictórico com suas cores extremamente meticulosas, produzindo uma necessidade de evocação do trâmite audiovisual e reagindo muito ativamente ao filme de James Dean em sua identificação imagética. O papel do público que está na sessão ressoa diretamente na forma que costumamos apreciar a exibição de um filme. Ao final do curta, por exemplo, o protagonista cede. Saindo da sala ele ouve a trilha sonora do seu filme favorito e vê, junto a todos os outros, aquilo que faz seu olho brilhar. Não importa muito o filme que você esteja vendo. É a sua paixão e a sua inspiração que te seguram na poltrona.
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