Há muito eu não via um filme em que minha única preocupação era apenas sentar e me regozijar com o tempo passado, as experiências contadas e a forma apresentada. O universo criado por Rossandra Leone - diretora e roteirista carioca responsável por apresentar uma trama em que o drama se esconde para dar tela, voz e espaço para pessoas que estão ali, celebrando o bom que os humanos têm a contar - é, para dizer o mínimo, uma graciosidade de experiência cinematográfica.
Tentarei fazer um exercício de cadenciar meus comentários para não deixar que meus pensamentos se sobressaiam à maneira que o filme denota seu conteúdo, mas apreciar essa escolha de história e estilo de vida que as personagens levam no filme é quase que um movimento culposo hoje em dia. Quantas vezes a gente se perde na correria e frieza do cotidiano e esquecemos de dar atenção para as coisas simples da vida? Um bom dia do seu parente que não vê há muito tempo; um beijo de mãe; um grupo de crianças brincando na rua; um senhor descansando suas memórias sentado na calçada enquanto observa o vai-e-vem mundano. Tudo isso recebe um cantinho especial na história contada por Rossandra e, mais que isso, conquista o olho de quem possa assistir a esses poucos minutos de uma rotina brasileira.
A sequência de planos com a qual o filme se inicia acredito representar categoricamente todo o desenrolar da história. Momentos que somados a momentos criam a identidade das peles que vivem no país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. O verso de Jorge me refresca na memória as experiências que nos fazem ser esse Brasil caloroso e carinhoso que os personagens de Ficção Suburbana trazem à vida. A banda sonora que toca um leve batuque misturado ao funk, remetendo à toda a ginga que corre em nosso sangue; a dancinha de TikTok das crianças; as vizinhas fofoqueiras; a boa cerveja tomada pela mãe de uma das protagonistas; os olhos vidrados na rua e os braços apoiados na mureta da casa para se apoiar. Tudo isso colore a tela do filme de Rossandra e transmite uma paz serena que, algumas vezes, parecemos não merecer.
Dificilmente eu vejo um filme e não me preparo para o pior, para o momento derradeiro em que a tragédia vai acontecer, o estopim do início do fim da vida da protagonista. Com uma leveza muito estranha, “Ficção Suburbana” não me levou para esse lugar. É de causar uma sensação incômoda não acompanhar a montanha russa vivida por determinado personagem em um curto espaço de tempo, mas aqui no curta carioca essa impressão se esvai. Já temos preocupações demais para lidar, seja trabalho, estudos ou até mesmo família, que acompanhar uma história que se preocupa em apenas nos mostrar sorrisos e carinhos e afagos parece uma indignidade. Confesso ter me sentido um pouco desajustado nesse sentido, mas logo me rendi ao movimento de amor e deixei o filme me alavancar na sua proposta.
Acredito que sensibilidade seja uma boa palavra para resumir “Ficção “Suburbana. Duas moças recém-saídas da casa de seus pais que agora moram juntas. Começam uma vida lado a lado dividindo seus cotidianos e desejos. Rossandra me impressiona positivamente por uma direção coesa pela escolha de seus planos, delicada pela potencialidade de seus enquadramentos e concisa pela funcionalidade de sua decupagem. A encenação das personagens é dotada de um companheirismo e um senso de pertencimento muito grande. Desde o sexo noturno ao carinho ao sentar com toda a família no almoço de domingo, acompanhamos fragmentos de poucos dias na vida de um casal sáfico que exala parceria e maturidade. Suas famílias transpassam um ambiente de tranquilidade e conforto. Gosto muito de como o filme não faz alusão a quaisquer questões de preconceito em relação à orientação das protagonistas, mas as acolhe e coloca todas as demais personagens como iguais. Me pergunto até se essa história não passa de uma sátira e eu me perdi na sedução de uma vida como gostaríamos de viver, mas quer saber? Para mim não importa. São esses momentos que todos merecemos.
Marcela é bombeira e Camila, apesar do filme não detalhar com muito afinco, parece estar no campo da moda. A sutileza com a qual a história também insere a reafirmação de pessoas pretas é bela. O projeto de Camila ecoa para além do filme. “Essa é a minha proposta para a inserção de corpos pretos e periféricos [...]”. Mostrar ao mundo sua ascensão sem esquecer de suas raízes é uma das maiores virtudes que uma pessoa pode carregar em si e aqui essa nobreza de caráter é explicitada pela fala de Camila. Muito me toca a maneira que o filme representa características e traços do subúrbio brasileiro. Nada parece estereotipado, nada parece forçado, nada parece fora do lugar. Vez ou outra uma interpretação e uma fala parece fora de tom, mas cobrar um “erro” — se é que devo me atrever a colocar essa palavra no universo do filme de Rossandra — de possivelmente não atores é uma displicência tamanha.
Assim como quando escuto meus álbuns favoritos, assisto a esse filme com a mesma convicção de que tudo terminará bem. Cada peça do tabuleiro cinematográfico criado pela equipe de “Ficção Suburbana" é merecedora de congratulações. Curioso como minha última participação no Festival Desver desemboca em um filme como esse. Após tantos anos vendo e revendo o cinema, suas potencialidades, subversões e teorias, encerro um grande ciclo da minha vida com um curta-metragem — uma paixão pessoal — que está ali para nos relembrar que as grandes histórias são momentos que nos trazem felicidade genuína na vida. E, na verdade, esses fragmentos das nossas trajetórias são geralmente os mais simples. O carinho de quem amamos; a compreensão de quem depositamos nossa confiança; o amor de quem devotamos nossa lealdade e gentileza. Tudo isso nos leva para o momento derradeiro em que a realidade bate aos nossos olhos e nos regozijamos por experienciar e acompanhar a evolução dos nossos. No lugar de Rossandra Leone e toda a equipe por trás dessa crônica do cinema brasileiro contemporâneo eu teria muito orgulho de “Ficção Suburbana” e eu espero do fundo do coração que eles também tenham. Da mesma forma, tenho muito orgulho de tudo que o Desver já foi até aqui e ainda será. A realidade que queremos viver é a que não precisamos criar uma ficção em que podemos apenas ser honestos. Sátira ou não, do centro ao subúrbio queremos uma vida como “Ficção Suburbana”.
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