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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

  • Foto do escritorJoão Gabriel Pelosi Pereira

Comentários sobre o filme Cadim e o Festival Desver

Acredito que estar no último ano do curso me faça olhar para os nossos projetos de um lugar privilegiado. Sou da primeira turma e participei de todo o crescimento do Audiovisual UFMS, conhecendo novos professores, novos alunos e novas políticas dentro da faculdade. Vi o Desver surgir e acompanho as mostras competitivas desde então. E algo me deixa bastante incomodado, sobretudo nas duas últimas edições do Festival. Sinto que a maioria dos filmes entra na nossa seleção mais pela capacidade de impressionar pela técnica do que pelo bom manejo dela em relação aos temas abordados na criação de discursos e experiências cinematográficas interessantes.

Talvez pela recente e inescapável obrigatoriedade de participação de todos os alunos na construção do evento – pode ser que muitos que não gostariam de estar nas equipes e trabalhar com a curadoria, por exemplo, mas o fazem por causa curricularização da extensão –, ou por um escasso repertório cinematográfico geral, uma espécie de maravilhamento com imagens “bem construídas”, “virtuosas” e “bonitas” por vezes se sobrepõe a tudo mais que um filme pode ser e transporta algumas obras questionáveis à lista dos selecionados. Um sintoma é o número tão grande de faculdades particulares contempladas: são onze filmes de instituições pagas de um total de vinte e dois. Não quero dizer que quem tem a mensalidade debitada da conta todo mês deveria ter também o filme excluído da competição, mas me atento ao fato de que são os institutos privados os mais capazes, no sentido material, de construírem esse mar de encantos na tela. A “perfeição” é cara e nós mesmos da UFMS não temos recursos para alcançá-la. Por que uma seleção tão tecnicista, então?

E vale dizer, antes de falar sobre o curta que dá título a este texto, que isso que comento até então não me faz assistir a um filme da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), como é o caso, com a presunção de que ele será tão bonito como vazio ou problemático. Concordo com o Marco, parceiro na coordenação da cobertura da edição anterior e grande amigo, que o filme Además de las Máscaras, também da FAAP, foi “Cinema e da melhor qualidade” no Desver 2022. Convido vocês a lerem o texto dele, inclusive. E eu torcia muito para que isso se repetisse com a obra para a qual fui designado a escrever neste ano. Mas a animação Cadim, dirigida por Luiza Pugliesi Villaça, embora tenha provocado a queda de algumas lágrimas no meu rosto, me decepcionou bastante.

Para começar, a verdade é que eu sou bom para chorar em filme. Ainda mais quando tem algum animal nele. E Cadim atende a esse requisito: na história, acompanhamos a caminhada de um homem faminto por paisagens inóspitas com um passarinho na gaiola até que os dois encontram um lugar frutífero para se assentar. A partir de então, vemos a dupla ser separada por um fazendeiro que dá tiros para cima e fere o passarinho enquanto este voava, fazendo com que o andarilho precise encontrar seu companheiro e tratá-lo a fim de que ele possa bater as asas novamente.

Tudo é muito triste e foi impossível não sentir pena dos dois amigos. Já tive uma cachorrinha e, assim como o andarilho, também a via como minha maior companheira da vida. Não teve como não lembrar dela... e talvez por isso – mas não somente – me envolvi tanto com a relação dos dois personagens. O outro motivo, inescapável, é a comentada execução virtuosa da técnica. Isso porque, embora eu carregue questões comigo que enviezem meu olhar para uma história de companheirismo entre homem e bicho, o que me toca é na verdade a materialização dos acontecimentos dela em imagem e som, na tela em minha frente. Eu poderia estar falando de um filme que fizesse isso de maneira completamente desinteressante; que nem chegasse a despertar as lembranças bonitas que tenho com a cachorrinha; e que, no fim das contas, até me entediasse. Mas não é o caso, nem de longe. Há uma enorme coerência entre todos os departamentos no que diz respeito a construir artifícios de empatia pelos personagens e isso contribuiu para a sensação de compadecimento a eles que me acometeu durante a experiência.

Nesse sentido, me sinto compelido a fragmentar o texto em comentários sobre as diferentes áreas da realização e falo, primeiramente, sobre o visual do filme. Ele começa com a imagem de uma queimada com labaredas vermelhas e amarelas, as quais logo dão lugar, através de um movimento de câmera, ao cenário pelo qual os personagens começam a andar. Num fundo branco com vincos de papel amassado – algo que lembra os registros de cordel –, surgem os desenhos de galhos secos, terra e gramíneas em cores tão quentes quanto aquelas do fogo. Eu sinto, através das tonalidades e texturas articuladas pelo trabalho de direção de arte de Luiza Pugliesi e Fernanda Moreno, um pouco do calor e da aridez do mundo que elas concebem, como se eu experimentasse fragmentos da realidade encarada pelo andarilho. Este, por sua vez, é formado por traços pretos embolados, oscilantes e disformes, que deixam no seu corpo grandes espaços transparentes. Seu rosto é desenhado por linhas brancas minimalistas, responsáveis por dar forma apenas aos olhos e sobrancelhas, mas que, mesmo assim, transmitem a tristeza da feição e, logo no primeiro close, me fazem ficar triste junto com o personagem. Falo sobre o momento em que ele interrompe o andar cabisbaixo quando sua barriga ronca e olha para o sol que surge no céu. As sobrancelhas se apertam e, pela proximidade do plano, vejo os buracos do seu corpo tornarem-se ainda maiores. O traço do boneco me faz experienciá-lo como um homem sofrido e recheado de vazios que parece encontrar no passarinho, um personagem desenhado com contornos definidos e preenchimento, a razão de continuar caminhando. Quando o homem se senta e abre um pano com sementes a fim de alimentá-lo, a cara deprimida some por alguns segundos, como um respiro no meio do deserto hostil. E, percebendo assim a beleza daquela amizade, me cativo pela dupla.

A partir de então, me pego cada vez mais compartilhando das emoções dos personagens. O animal olha para fora da gaiola e me aperta o coração vê-lo preso e distante da sua natureza. Por outro lado, imagino o quão abatido ficaria seu amigo vendo-o voar para longe. É uma situação muito doída que se agrava ao passo que sigo acompanhando-os. Eles passam por um rio seco, uma vaca magra, mais gramíneas, um cercado e, com ele, gramas verdes, vacas gordas e um fazendeiro armado, que os observa com cara de poucos amigos. Surgem os primeiros elementos que remetem à frutiferidade e contrastam com tons vermelhos de outrora, mas vêm acompanhados da lembrança do latifúndio. Mais uma camada de dor se adiciona ao protagonista e o filme, agora com o aceno direto ao cenário de concentração de terras no nosso país, fica ainda mais triste. É sofrimento atrás de sofrimento: ainda cai a chuva, atiram no passarinho e revela-se o passado do andarilho. Com a abertura de uma foto, no clímax, vemos que o homem um dia teve uma família, e que dela só resta agora seu parceiro de asas que está desaparecido. E esse sentimento se fortalece, para além das contribuições do roteiro e da arte, com as notas melancólicas da sanfona e do violão da música de Pedro Fonseca. Ela ocupa a banda sonora nessa toada durante quase toda a rodagem e tem papel essencial para o embalo das emoções comentadas.

No mais, tudo está perfeitamente alinhado na construção de um universo inóspito que suscita minha relação de proximidade com os protagonistas. Sinto, de certa forma junto com eles, parte da aridez, das injustiças e da melancolia que abraça aquele mundo. Me compadeço por isso e continuo vidrado na tela a fim de acompanhá-los e descobrir o que vai acontecer, torcendo para que o futuro os redima. Assim, falando do ponto de vista funcional, é um filme que se resolve super bem. Ele parece ter um objetivo e o executa virtuosamente. Tudo que falei até então, numa lógica mesmo de compartimentalização do texto em áreas específicas da criação (roteiro, som e desenho), se soma e dá como resultado a experiência altamente engajada que tive. Para falar de mais coisas efetivas, são lindos os planos da procura pelo animal em que o protagonista parece nadar em ondas coloridas, por exemplo. Eu me emociono de verdade com eles. Me emociono de verdade com Cadim. E queria muito que isso pudesse fazer meu texto terminar enchendo-o de elogios. Através daquela visão que encerra na técnica bem executada as apreensões sobre o que assiste, pelo menos, é um filme excelente. Mas não é só disso que se faz o cinema, embora desde sempre tenhamos sido levados a pensar assim. E o jeito como o curta termina me incomoda bastante.

Depois de passar pelas ondas coloridas, o andarilho encontra o passarinho e cuida de seus ferimentos. Um outro plano lindo vem em seguida e mostra o animal se recuperando na gaiola enquanto o céu alterna entre o branco, roxo e vermelho. A câmera se aproxima e o passarinho se retorce, fazendo esforço para bater as asas. O andarilho o carrega, andando como no início do filme. A música sobe e acompanha toda a ação com notas alegres e inspiradoras, bem diferentes agora no final. E o passarinho volta a voar. Ele sobe em direção aos céus enquanto seu companheiro descarta a gaiola e continua rumando ao nada com a mesma feição triste. Alguns passos depois, ela se desmonta ao ver que o animal voltara para a sua companhia. Agora pousado em cima da cabeça do seu companheiro e não mais por detrás das grades, segue junto com ele mais uma vez. Nesse momento as lágrimas começaram a correr pelo meu rosto e me animei para escrever sobre o filme. Eu faria um texto dizendo como havia achado linda a construção da ideia de que não precisam-se de grades para cultivar o amor... É bobo e um pouco brega, eu sei. Mas eu estava bem emocionado e nem tinha percebido o que acontecera. O filme terminava praticamente na mesma situação em que começou, com o andarilho faminto e caminhando sem rumo – mas agora eu estava feliz.

E isso é muito problemático. Muito, mesmo. Eu me envolvi com o filme justamente porque ele me coloca junto desse personagem que sofre e me faz sofrer com ele. E esse sofrimento é certamente amplificado pelas relações traçadas com problemas reais que acometem as pessoas do nosso país. Não é um personagem que caminha com o passarinho engaiolado no éter. O cenário, pelo contrário, é bem localizado no ambiente rural brasileiro: lembra o cordel; alude à vegetação do cerrado; remete ao calor; e fala de fome e desigualdade, coisas profundamente enraizadas por aqui. E isso precisa ser levado em conta na hora de se pensar sobre a obra. Por que a escolha dessa ambientação? Ela remete a quais problemas e, a partir disso, se articula de qual maneira? No que ela agrega ao filme: complexifica algum tema ou os aproveita só como disparadores emocionais?

Pensando nessas coisas não consigo me sentir outra coisa senão traído. No fim das contas, não importam os latifúndios nem a falta de comida. Eles são coisas esquecidas depois que o passarinho volta e o filme acaba feliz. Importa, na verdade, o fato desses assuntos serem funcionais para gerar identificação e fazerem com que a gente experiencie de forma sincera o filme através da empatia com os personagens. E só. A participação da fome e do fazendeiro atirador no filme é apenas a de um dispositivo dramático que nos faz sentir pena de um personagem para, como na adrenalina da descida da mais alta das montanhas russas, ficar muito feliz no inverter dos polos da emoção e se admirar tanto com a volta de um passarinho a ponto de esquecer do sofrimento do seu dono. É por isso que a caminhada não se dá num cenário abstrato. A altura da qual desceríamos seria muito menor, o clímax menos catártico e eu possivelmente nem choraria. É uma escolha bastante funcional a de ambientação, assim como são as da música, do roteiro e da animação. Mas nem por isso são boas. Pra mim contribuem mais para desrespeitar o próprio protagonista e as questões que o filme parece querer debater.

E é isso que pode acontecer quando direcionamos nossos esforços ao aspecto técnico das obras em detrimento da reflexão sobre elas. Assim como em Cadim, um filme extremamente competente na manipulação das imagens e dos sons, o porquê do fazer fílmico fica de escanteio. No campo da produção cinematográfica, as consequências desse fenômeno se associam, por exemplo, ao surgimento de obras virtuosas com discursos questionáveis. Mas não é esse o único momento da cadeia produtiva afetado. Nossa curadoria, responsável pela difusão dos filmes dos colegas universitários aqui em Campo Grande, mostra um pouco desse apreço pelo cinema “bem feito”, em que as regras de avaliação parecem intimamente condicionadas aos padrões de uma indústria cheia de recursos que nem é nossa. Algo que tira o espaço de qualquer coisa mais subversiva que possa ter aparecido nas inscrições, inclusive. Como resultado, acompanhamos nos dias 27 e 28 longas sessões, todas elas com mais de uma hora, de curtas parecidos em uma coisa: em geral são ficções (elas ocupam mais de sessenta por cento dos selecionados), com quadros “bem compostos”, fotografias “bem expostas”, desenhos “bem feitos” e sons “bem mixados”. Algumas delas, é claro, têm algo de interessante articulado na forma fílmica para além de pretensas belezas.

Por fim, penso que o Festival Desver tem muito a crescer e torço pelo sucesso dele ainda que eu esteja indo embora da faculdade no ano que vem. Acredito, também, que os professores do nosso quadro podem concordar um pouco comigo sobre as questões que trago aqui. Mas, enfim, melhorar isso é trabalho pros próximos alunos. Foi muito bom fazer parte do curso durante todos esses anos.


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