Planos detalhes de objetos que nos remetem ao íntimo da periferia brasileira, uma mise-en-scène que nos transporta ao subúrbio carioca com animais livres andando pelo quadro, paredes sem reboco e os tons quentes da fotografia nos posicionam na realidade do documentário. Em Deus Não Deixa, o protagonista Miguel há anos deixou de se travestir como Mika Sapequinha, cortou os cabelos, cresceu a barba, deixou o feminino para trás e se juntou à Igreja Evangélica. No decorrer do filme, ele revisita a memória e busca o autoconhecimento.
Deus não Deixa nos leva a epiderme da vida de uma pessoa LGBTQIA+ que se priva de atitudes passadas para viver em sociedade graças ao manto religioso que a cobre e, emocionalmente, açoita. O filme, através de relatos, reforça o tom nostálgico com fotos de arquivo e entrevistas com personagens que conheciam Miguel antes da conversão.
No primeiro terço, barras de ferro em janelas, cadeados em portas e diálogos de um tempo que não volta mais me fazem sentir o aprisionamento interno que a personagem está inserida no hoje ao reviver seu passado de outrora. Os tons azuis e frios reforçam ainda mais a tristeza misturada ao conformismo de que sobre o que já passou.
A constante pressão colocada sobre Miguel para “ser ou não ser” faz com que a montagem o apresente cada vez mais recluso e servindo aos outros ao invés de se apresentar propriamente ao espectador. Ele surge fritando ovos, fazendo a sobrancelha do amigo, trabalhando como frentista e testemunhando na igreja. Colocando a si próprio de lado para o benefício do externo, dos outros. E o filme caminha com esse sentimento, de conformismo com o que há de ser. Com o que tem de ser.
Até que, no clímax, Miguel se remonta e se reencontra. Em plano americano no espelho do banheiro, com detalhes da navalha da barba o despindo cada vez mais do símbolo da masculinidade, Miguel fala de si e de seu alter ego. Vemos Mika, a travesti aos poucos aparecendo no mesmo passo que as cores em cena vão mudando. A luz quente no quarto nos leva a um momento belo de intimidade entre os amigos que se arrumam e a câmera que se porta como um voyeur emocional que beira à confissão.
Um close nos lábios de Mika/Miguel evidencia ao espectador o primeiro sorriso da personagem sendo banhado pelo batom vermelho que o transforma. As cores, até então mais pastéis e achatadas, ganham projeção e vivacidade na cena que se torna o coração do curta. Luzes coloridas percorrem a casa escura enquanto os dois performam e se divertem sozinhos, o que me remete à diversidade e à liberdade.
Um corte seco me leva a Miguel andando só num trilho de trem em plongée que sobe mostrando a ferrovia sem fim à vista e o horizonte, e ouvimos em off uma pregação. O plano me remete a trajetória da personagem e sua busca infinita pelo eu; sua batalha com o existencialismo. Miguel está no meio de uma roda que ora. Uma mão vai a sua cabeça. E mais uma vez o som denuncia a submissão da personagem aos agentes externos, em principal a sua devoção e temor à Deus.
O filme, assim, nos sensibiliza a realidade vivida por muitos e muitas pessoas LGBTQIA+ que vivem uma constante agressão pela religião e se sacrificam crucificando a eles mesmos para se sentirem parte da sociedade que os marginaliza. O estado psicológico de intimidação, violência ou abuso que Miguel se sujeita, e simpatiza, faz com que ele finalize o curta se entregando à vontade de Deus, em busca da moralidade.
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