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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

A empatia como motor do discurso

Foto do escritor: João Gabriel Pelosi PereiraJoão Gabriel Pelosi Pereira

Assisti a João de Barro sem ler nenhuma informação prévia do curta. Após os créditos finais, ainda pensativo sobre como ele acaba, me deparei com a sinopse e, num reflexo, conferi se ainda estava acessando o mesmo site de segundos atrás. Fiquei confuso pois, naquele momento, pensei ter visto outro filme. Ela dizia que a obra era sobre Júnior, rapaz traumatizado que revivia o dia da morte de seus pais. Para mim foi sobre outra coisa, e nem entendi que era isso que o personagem fazia. O homem, surtado e retrógrado, apenas falava de forma autoritária com bonecos de gesso com formas de mulher e menino. Longe de acessar a história que baseou todas as imagens e sons com os quais me relacionei, tomei para mim essa maluquice como metáfora.

Antes de explorá-la, no entanto, falo sobre o sentimento mais imediato que me surgiu no contato a obra. Os instrumentos de corda desafinados e os ruídos de estática, que compõem a banda sonora extra diegética na primeira cena, me deixam muito incomodado. E essa sensação, logo percebo, não é comum só a mim, pois vejo na face de Júnior expressão de desconforto semelhante à que tomava a minha. Esses sons – que mais tarde se alinham com mesmo objetivo a jumpcuts, tomadas de exposição alta e o canto dos passarinhos, este diegético –, responsabilizam-se, assim, por estabelecer a condição psicológica em que se encontra o personagem. São recursos que constroem a loucura dele ao passo que também me inquietam. Eu entendo e experiencio o que sente o protagonista e, por isso, embarco na obra e posso acessar as questões postas por ela a seguir, as quais se pautam na relação dele com os bonecos.

É esse contato, afinal, que torna impossível a transformação da empatia por Júnior em algo maior, como admiração ou torcida. Vejo-o conversar com o gesso e me distancio dele conforme suas falas tomam contornos cada vez mais opressivos e autoritários. Desenvolvo repulsa ao personagem por pensar que não se deve tratar ninguém da forma com que ele trata os bonecos. E isso se deve a uma ideia que, creio, não teria sido gerada em mim caso eu tivesse lido a sinopse: só me importo com as esculturas pois as vejo como abstração. Ao fim e ao cabo, não configurariam problemas de cunho moral os maus tratos às estátuas enquanto puros objetos inanimados – e é isso que elas seriam se eu pensasse no filme a partir da descrição feita pelos realizadores, uma vez que ajudariam apenas a compor a encenação do protagonista –. No entanto, a família esculpida, por ter uma forma genérica (os bonecos não têm cor e suas feições são pouco definidas), torna-se para mim uma essência de família, a qual se refere àquela em que a voz do patriarca é ordem. Ora, se os bonecos não têm forma definida, penso que qualquer forma podem ter. E aqui eles exprimem justamente o papel da criança e da mulher nesse tipo de organização: seres sem voz, presos e paralisados frente ao patriarca.

Me interessa a virada do filme que se dá após Júnior receber um artesanato de casinha de João de Barro, o qual lhe provoca lembranças de sua falecida mãe. Isso o leva para o quintal da casa, de onde desenterra sua caixinha de lembranças da infância. Nesse momento os jumpcuts se intensificam, a câmera vai para a mão e a exposição dela estoura o céu. Júnior olha para o desenho de uma casa por detrás de grades, feito por ele quando criança. Os pássaros gritam e ele desaba. Os berros dos seres que possuem a liberdade para voar enfatizam o sofrimento daquele que, com as mãos levadas à cabeça, relembra que os seus dias compartilhados com a família foram responsáveis por prendê-lo. A crítica à família patriarcal calcada na relação dos bonecos com o protagonista revela uma nova camada ao mostrar que ela se constitui, também, como provedora de sofrimento para aquele homem que, traumatizado desde os tempos de garoto, continua replicando o estilo de vida que o faz sofrer justamente por não conhecer outro.

E é por isso que penso que a grande força do filme está na criação de empatia pelo Júnior. Não é uma empatia no sentido de torcer por ele ou de aprovar suas ações. O filme mesmo as repudia, como já falei. É uma empatia, por outro lado, que nos faz sentir o que ele sente – portanto, o incômodo – e que nos faz perceber, no fim das contas, que esse modelo de família não é benéfico nem mesmo para a figura alçada ao centro de poder. O trauma do menino preso e sem voz continua quando ele se torna pai. O pai, traumatizado e infeliz por ter vivido pouco para além dos limites que a família lhe impôs, seguirá a única referência da função que teve e continuará esse ciclo de opressão. E isso não o deixará menos perturbado.

Acredito, então, que o filme fica muito melhor sem a sinopse. Quando Júnior envolve seu pescoço com a corda e a amarra na árvore, no final que me deixou pensativo, o fato de ele não morrer pode ser entendido de duas formas em minha visão. A primeira é a de que, dentro da história que se almejou contar, ele encenara todo aquele dia para entender como seus pais morreram, com exceção do último ato. A segunda relaciona-se justamente com essa opressão cujos efeitos nunca acabam. Gosto mais desta. É o filme terminando seu discurso sobre o caráter perverso da família patriarcal autoritária, um ambiente que, uma vez que enclausura, gera dor infinitamente e enlouquece todos os seus membros. É um filme que não consegue contar a história que queria, mas isso não necessariamente me fez desgostar dele.

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